Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


terça-feira, 31 de julho de 2012

Lava parece-me ser a melhor comparação a fazer com o meu sangue, de momento. Trata-se de uma lava fluída, aparecendo sem darmos conta, aquecendo e absorvendo territórios à sua passagem, dando-lhes nova forma e conteúdo após uma saída regular do vulcão. Momentos há em que parece encontrar uma qualquer elevação, e então acumula-se, adicionando-se novas camadas até que o ponto alto seja atingido e posteriormente transposto a uma velocidade tal que o transforma em esquecimento. Outros locais há onde o deslize é mais regular, permitindo uma velocidade constante, sem sobressaltos. Imagino-me no cimo de uma qualquer elevação por instantes, de forma a contemplar todo este espectáculo, apostando que se aí estivesse a minha vontade seria a de mergulhar, afectado por um momentâneo desejo de viver, mesmo que não totalmente esquecido das dores associadas.
ganharam uma autonomia demonstrada pela forma como contornam objectos
uns reais outros imaginados, seguindo sombras
e por vezes afastando-se quando não se fazem esconder


a necessidade de mudar ou criar percursos surgiu
sem que dos ponteiros e suas molas soltas se tenham apercebido
e em relação à técnica apresentem real noção


vezes há em que vão por estímulos, ou julgo irem
fartos que se encontram do jogo do relógio
e esquecidos que se tornam da própria dor, entretidos entre parafusos

segunda-feira, 30 de julho de 2012


"Se eu quisesse enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar isso tudo.Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a nossa vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo. Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e a violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida." - Herberto Helder, Estilo, Passos em Volta

pós caem, atingidos que foram por uma brisa
mantendo-se do outro lado o sentido do vento
contribuindo assim para o adensar da erosão

da face visível apenas as arestas se arredondaram, tão perfeitas
notando-se pequenos aglomerados de materiais no topo
esperando o momento exacto para o salto à montanha 
esta que se encontra prestes a atingir e camuflar o topo

no entanto, juro através de fonte segura a existência de fendas
tornadas invisíveis deste lado do muro
o qual se vê a um passo de cair e transformar tudo planície
Tenho um relacionamento difícil com as minhas lágrimas. Por vezes, aparecem-me sem que dê conta disso, apenas já com elas a escapar do meu olho e a fazer uma pequena curva pela minha face antes que a apanhe com a mão, num gesto que tem tanto de irreflectido quanto o haver chorado. Outras há em que se recusam a saltar das minhas pálpebras, havendo a presença de nervos que as agarram por ferros, havendo uma simetria de dor entre o que sinto e o que penso. Neste últimos momentos, nervoso, peço por tudo o abrigo de um qualquer canto sem vozes, sem respirações de terceiros, sem passos por perto, apenas um qualquer clique que me fizesse abrir as comportas e não me ocupar com nada mais para além de um rio por dar vida.

Cena de "Viver a vida", de JL Godard


sábado, 28 de julho de 2012

mundos se dão antes de começar a escrever, e continuarão após
sem que o eu escrever surja como qualquer tipo de causa
como qualquer tipo de causa de mundos cujo alcance não vislumbro
ou em relação a mundos onde imagino que nenhum foco se dê para este texto


assim encaro o escrever, de momento, como tentativa
(tendo noção que à partida falhada)
mas tentativa de me transformar escrevendo sobre outros
e, talvez mesmo, escrevendo com e ao lado de outros


com e ao lado sem que de ninguém receba solicitações
sem que de ninguém note o ritmo da respiração, o olhar
o calor da presença, possivelmente, os pés ganhando vida pelo chão


apenas procurando cheiros, falas, toques, hábitos
escavando entre mim o que imagino ser de outros
e que acaso sem esse imaginar não me encontro nem afasto a solidão
Necessito de uma parede bem fixa para se tornar molde da minha testa, um qualquer shot capaz de me retirar o ar e que contenha álcool suficiente para apenas isso sentir pelas entranhas, um sprint que começaria por razão nenhuma e continuaria sem rota definida até eu tropeçar, um grito dado ao atravessar a rua sem que a ele ninguém reagisse e nem de um único olhar fosse alvo, agarrar qualquer coisa inútil como uma caneta entre mãos e posteriormente deixá-la esquecida num qualquer canto da mesma forma que a havia destruído sem disso me recordar, atirar continuamente qualquer coisa contra um muro sem ter a necessidade de a apanhar de cada vez já que viria sempre ter às minhas mãos, arrancar de uma só vez todo o meu cabelo apenas com a força do meu punho e deixar unicamente a cabeça para maltratar.

quinta-feira, 26 de julho de 2012

Uma janela semi-aberta não longe de onde escrevo, ainda que, estando esta imóvel, tendo a tomar eternos sons e correntes de ar que a pouco e pouco se vêm convidados a entrar, tratando-se maioritariamente de motores espaçados numa alameda escondida por prédios, de quando em quanto alguém que chega ou parte de casa, uma pessoa com insónias zelosa das necessidades do cão, possíveis grupos de amigos em euforia. Sinto os meus sentidos a repousarem, começando pela minha audição a detectar um ligeiro abanar de ramos em árvores próximas, não esquecendo a minha visão que não só detecta como cria imagens entre tectos e paredes, sendo que dou ainda destaque a um outro não considerado como tal, mas que se revela capaz detectar fluxos sanguíneos em ebulição por áreas associadas ao sistema respiratório, também este com pequenos problemas por agora. Tendo noção do que lá fora chega, de forma serena, como que em contraste, procuro estar atento à sua chegada, antes que me atire contra paredes.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Tomo-o como um vórtice algures alojado, tomando para si o centro de gravidade que me resta, por favor de um expulsar de substâncias de que sou incapaz de nomear, consciente, apenas de uma outra espessura nos canais circundantes. A um dado momento, talvez farto, a lava extravasa-lhe, dando corpo a um leito por mim ainda não conhecido. Isto, sem requerer permissão ou fazendo caso dos meus apelos, desafiando-me, ao invés, a ajudá-lo no reconhecimento.

segunda-feira, 23 de julho de 2012


não fossem as lágrimas e passaria o resto da noite a mirar o tecto

Nervos cuja existência desconhecia barram a saída de água dos meus olhos, ao mesmo tempo que a testa se franze, apenas vista por mim já que escondida entre cabelos. Há um revirar que me avisa da humidade presente, à espera de atacar. A respiração encontra-se intermitente, mesmo com os pulmões a querer saltar. A minha língua faz um reconhecimento interior, às escuras, procurando apanhar cada som mais expedito, não o deixando fazer estragos. No meio disto tudo, uma qualquer ferramenta que se deixou cair e acolheu abrigo numa roda dentada ao acaso, impedindo a máquina de trabalhar, notando-se um movimento intermitente mas que se prepara para descravar e engolir o que encontre pela frente.

Led Zeppelin - I Can't Quit You Babe


entre passos de dança
incapazes de fazer os pés mexer
e sem que a estilos tenha entregue o corpo
este assente num estrato cujo ritmo se deixou apanhar
perdido para ponteiros coxos, aliados de uma poeira cadente

a cabeça, deitada
sem que agora possa garantir onde
[e, julgo, sem o poder garantir à altura]
apenas certo que desligada de tronco e membros
os últimos responsáveis por apelar ao estilhaçar de janelas

acredito que dormia aquando do bater da porta [a ter batido]
razão, creio que suficiente, para não ouvi-la ao início
deixando-me num sono que depois se aproximou da rua
até se ver ao lado do toque
ou criando-o ele próprio

a dúvida porque, segundo o que posteriormente apurei
atrás da porta nada, ainda que sendo algo também
entre o momento do sono e o momento do acordar
juntando-se o próprio rodar da chave da porta que julgava perra
ao som que os meus ouvidos juram ter existido
o qual, pelas meus tecidos, se entranhou


quarta-feira, 18 de julho de 2012

É uma mão perguntando através das suas unhas
capaz de emergir montanhas a moldar pelo balancear do cotovelo
confundido-se mais e mais com a terra em si
ao ponto de a circulação que aos primeiros esforços surgia
avermelhar agora alguns dos novos sedimentos
enquanto minerais diversos se vêm convidados a entrar.

terça-feira, 17 de julho de 2012

Hologramas


Procuro abrir a boca e o som some-se, ficando uma breve brisa entre lábios a acompanhar um qualquer músculo que sinto contrair onde não julgava serem territórios seus. Um pequeno focar por parte dos meus olhos surge, seguindo uma paisagem que se move consoante o ritmo do meu andar e que, só de quando em quando, por exemplo, após uma folha a deslizar pelo ar, volto a ter noção de algo como o atrito da calçada. As minhas mãos sentem necessidade de testar a minha presença. Primeiro, ainda dentro dos bolsos, procuro saber se ainda tenho duas pernas, de seguida, é hábito meu seguir para o cabelo e confirmar se o tamanho e volume se mantêm, não tenha desaparecido qualquer coisa entretanto; tendo a finalizar com um teste ao batimento cardíaco. Pensando bem, isto pode ser coisa para durar uns cinco segundos, talvez nem isso, mas a desconfiança em relação à minha presença permanece.
Ao mesmo tempo, as ruas repetem-se, alternando alguns graffitis bem como algumas fachadas. As ruas aparecem-me já com pouco para dizer, ou, talvez sendo eu a não ouvi-las. O mesmo para quem cruzo e passo, por vezes torcendo braços para me desviar, mas pouco mais. Os edifícios sucedem-se, os transportes vão se encavalitando no trânsito ou surgem espaçados, ficando, em alguns momentos, não mais do que o barulho do motor ou as rodas a lavarem-se numa qualquer poça pouco depois de passarem. Tendo em conta as horas torna-se raro um reflexo nítido numa qualquer montra, sendo que o ruído que se vai criando e recriando não me impede de escutar os passos das minhas sombras, rodopiando estas últimas ao som de candeeiros e faróis de carros, um ou outro clarão.
E todo este ambiente faz-me pensar e o que penso ambienta-se no que vejo, no que oiço, no que passo, no que toco. Qual o mais importante, ou, para colocar melhor, qual o mais intenso em dado momento, o interior ou o exterior?, ou a própria oposição não fará sentido? Vejo-a tanto ao passar por um esquina, ouvindo-a quando ao fundo sorrisos em outras línguas se expandem, tocando-me ao de leve os ouvidos,. Vejo-a quando uma luz de um qualquer estabelecimento surge e me faz erguer o olhar, e quando apago o olhar me invade as pálpebras e se torna uma figura contínua em relação à qual não consigo escapar. Rapidamente, procuro um canto onde me sentar, uma pedra para estender a palma da minha mão, um qualquer pilar para moldar as costas, vozes no ar e fumo de cigarros, e não só, algo para rasgar.

Ecos - T.S. Eliot


O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro,
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo o tempo é eternamente presente
Todo o tempo é irredimível.
O que podia ter sido é uma abstracção
Permanecendo possibilidade perpétua
Apenas num mundo de especulação.
O que podia ter sido e o que foi
Tendem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Ao longo do corredor que não seguimos
Em direção à porta que nunca abrimos
Para o roseiral. As minhas palavras ecoam
Assim, no teu espírito.
                                Mas para quê
Perturbar a poeira numa taça de folhas de rosa
Não sei.
                         Outros ecos
Habitam o jardim. Vamos segui-los?

P.S. encontrado aqui http://aterceiranoite.org/2012/07/16/ecos/

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Faz-me o favor…


Faz-me o favor de não dizer absolutamente nada!
Supor o que dirá
Tua boca velada
É ouvir-te já.
É ouvir-te melhor
Do que o dirias.
O que és nao vem à flor
Das caras e dos dias.
Tu és melhor – muito melhor!
Do que tu. Não digas nada. Sê
Alma do corpo nu
Que do espelho se vê.
Mário Cesariny, in “O Virgem Negra”

Os meus olhos engrandecem
assim que na minha boca a língua quase mordo
os lábios torço, o andar altero, a mão testa a resistência capilar
e, com as pálpebras semi-cerradas, faço força para não chorar
custando-me a respiração, prendendo-me o pensamento
suspendendo o coração

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Ganhou volume
fazendo alargar a balão onde guardo o ar que respiro
não, sem antes, se ter rasgado
bombeando muito para lá de simples sangue

PJ Harvey - Silence

All those places
Where I recall the memories
That gripped me
And pinned me down

I go to these places
Intending to think
To think of nothing
No anticipate

And somehow expect
You'll find me there
That by some miracle
You'd be aware

I'd risen this morning
Determined to break
The spell of my longing
And not to think

I freed myself from my family
I freed myself from work
I freed myself
I freed myself
And remained alone

And in my thinking
Steal you away
Though you never wanted me
Anyway

Silence
Silence
Silence
Silence

quarta-feira, 11 de julho de 2012

É necessário fazer cansar o corpo. É necessário que os passos se sigam, é necessário que cada músculo dê o seu máximo sem que pergunte porquê. Há que atravessar as esquinas, há que olhar tudo sem em nada fixar. O cabelo precisa de movimento, e o vento é bem vindo. Há quem cruze, quem faça desviar, quem se desvie, quem quase choca. Chocar mesmo não seja fácil, mesmo não tendo a sensação de gravidade afinada. Há que o levar ao limite, fazer esquece-lo que sente, acabar evitar qualquer pensamento.

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Descem a rua, apresentando esta um tom mais carregado, próprio da altura do dia, em especial ao nível do paralelo, ainda que suavizado por uma lua que as nuvens existentes não são capazes de apagar. Os passos deslizam, não só pela inclinação mas, sobretudo, pela leveza oferecida pelo álcool. Existem outras vozes, e outros passos, alguns perto, mas tornados imperceptíveis pela conversa, mesmo que decorrendo a um timbre normal e pausado. Os corpos, ainda que maioritariamente alinhados no seu trajecto, por vezes fazem-se surgir, dobrando-se para ouvir ou falar melhor, isto quando não param para a cara procurar mais um golo envolto em pensamentos denunciados pelo olhar. O que é dito apresenta naturalidade, em especial a uma hora da noite que se vai alongando, mas também é fruto de um raciocínio que agora se deixa soltar com mais fluidez, soltando palavras que se entrelaçam numa lógica própria. Os edifícios em volta, moldados pelo traçado, vão se sucedendo. Cada um deles apresenta a sua beleza e peculiaridade, fazendo desejar o próximo e esquecer o anterior. De repente, estes ganham vida, não só se transfiguram com se movem, alternando lugares, fazendo a própria rua alterar-se. Quem passa continua, ainda que num outro ritmo, numa outra linguagem. O sentido do trajecto difere, perdendo-se as anteriores referências, mas continua-se a andar. Houve algo que ficou por dizer e o que se deve falar futuramente deixa de ter contexto, isto caso nada mude.
Descem a rua, estando esta num tom mais carregado, próprio da altura do dia, ainda que suavizado por uma lua que as nuvens existentes não são capazes de fazer esconder.