Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

João César Monteiro - Passeio com Johnny Guitar

Ver César Monteiro é, para mim, vencer a vida, mesmo sem ter a necessidade concreta - seja isso o que for - de nela entrar materialmente. A inquietação dá lugar à ironia, e posteriormente a um misto de tranquilidade e lucidez, mesmo que se possa considerar ilusória. Durante alguns momentos, como nos cigarros, janelas e dedilhares nesta curta, o confronto que tenho comigo próprio ocupa-se não de resolver os possíveis problemas, mas, bastante mais interessante, reduzi-los, relativizá-los, ridicularizá-los até, pois que melhor se pode fazer das nossas próprias inquietações. Não descartá-las, mas colocá-las noutro plano. Pensá-las, sem pensar. Estando consciente, sem estar.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012


Vejo-te um pouco como se já não houvesse
uma casa para nós. As grandes perguntas estão aí
por todo o lado, onde quer que se respire, dentro
dos próprios frutos. É o começo da noite
e os cinzeiros já estão cheios de meias palavras:
porque escolhemos tão pouco
aquilo que nos pertence?

Vejo-te de olhos fechados enquanto me confiavas
a tua história – à mesa da cozinha, quase um espelho,
quase uma razão. As minhas canções preferidas
pareciam convergir para ti a certa altura, dir-se-ia
que te vestias com elas. E no entanto
como se apressaram as grandes florestas a invadir
as gavetas, como misturaram as raízes
no eco que fazia o teu desejo contra mim.

Rui Pires Cabral
in A Super-Realidade

sábado, 24 de novembro de 2012

as pernas da mesa uma outra função
após extensão do membro
(as pernas da mesa igualmente membro
durante a passagem para nova categoria)

corpo decorativo em forma de lascas
lascas circundando o que até então figura geométrica
definida, forma e uma sombra como extensão dessa forma
que agora sombra nenhuma dado que colado ao chão


sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Herberto Hélder (23 Novembro de 1930)


"Sendo Herberto Helder um dos maiores poetas europeus contemporâneos, a força motriz da sua obra reside na inquietude da vigilância, na vontade de revisitação e de questionamento incessante do seu acto poético. A sua poesia caracteriza-se por ser viva e irrequieta, transbordando os limites daquilo que enuncia, extravasando-se para além do seu contexto histórico-social e inaugurando novas zonas de exploração que lhe concedem a designação de «poética de vanguarda»."


O AMOR EM VISITA

Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.

Cantar? Longamente cantar,
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas,
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes
ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.

Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;
e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.

Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.

E enquanto manar de minha carne uma videira de sangue,
cantarei seu sorriso ardendo,
suas mamas de pura substância,
a curva quente dos cabelos.
Beberei sua boca, para depois cantar a morte
e a alegria da morte.

Dai-me um torso dobrado pela música, um ligeiro
pescoço de planta,
onde uma chama comece a florir o espírito.
À tona da sua face se moverão as águas,
dentro da sua face estará a pedra da noite.
- Então cantarei a exaltante alegria da morte.

Nem sempre me incendeiam o acordar das ervas e a estrela
despenhada de sua órbita viva.

- Porém, tu sempre me incendeias.
Esqueço o arbusto impregnado de silêncio diurno, a noite
imagem pungente
com seu deus esmagado e ascendido.
- Porém, não te esquecem meus corações de sal e de brandura.

Entontece meu hálito com a sombra,
tua boca penetra a minha voz como a espada
se perde no arco.
E quando gela a mãe em sua distância amarga, a lua
estiola, a paisagem regressa ao ventre, o tempo
se desfibra - invento para ti a música, a loucura
e o mar.

Toco o peso da tua vida: a carne que fulge, o sorriso,
a inspiração.
E eu sei que cercaste os pensamentos com mesa e harpa.
Vou para ti com a beleza oculta,
o corpo iluminado pelas luzes longas.
Digo: eu sou a beleza, seu rosto e seu durar. Teus olhos
transfiguram-se, tuas mãos descobrem
a sombra da minha face. Agarro tua cabeça
áspera e luminosa, e digo: ouves, meu amor?, eu sou
aquilo que se espera para as coisas, para o tempo -
eu sou a beleza.
Inteira, tua vida o deseja. Para mim se erguem
teus olhos de longe. Tu própria me duras em minha velada beleza.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua noite e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.

Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida - e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém
teu silêncio de fogo e leite repõe
a força maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor. As coisas nascem de ti
como as luas nascem dos campos fecundos,
os instantes começam da tua oferenda
como as guitarras tiram seu início da música nocturna.

Mais inocente que as árvores, mais vasta
que a pedra e a morte,
a carne cresce em seu espírito cego e abstracto,
tinge a aurora pobre,
insiste de violência a imobilidade aquática.
E os astros quebram-se em luz sobre
as casas, a cidade arrebata-se,
os bichos erguem seus olhos dementes,
arde a madeira - para que tudo cante
pelo teu poder fechado.
Com minha face cheia de teu espanto e beleza,
eu sei quanto és o íntimo pudor
e a água inicial de outros sentidos.

Começa o tempo onde a mulher começa,
é sua carne que do minuto obscuro e morto
se devolve à luz.
Na morte referve o vinho, e a promessa tinge as pálpebras
com uma imagem.
Espero o tempo com a face espantada junto ao teu peito
de sal e de silêncio, concebo para minha serenidade
uma ideia de pedra e de brancura.
És tu que me aceitas em teu sorriso, que ouves,
que te alimentas de desejos puros.
E une-se ao vento o espírito, rarefaz-se a auréola,
a sombra canta baixo.

Começa o tempo onde a boca se desfaz na lua,
onde a beleza que transportas como um peso árduo
se quebra em glória junto ao meu flanco
martirizado e vivo.
- Para consagração da noite erguerei um violino,
beijarei tuas mãos fecundas, e à madrugada
darei minha voz confundida com a tua.

Oh teoria de instintos, dom de inocência,
taça para beber junto à perturbada intimidade
em que me acolhes.

Começa o tempo na insuportável ternura
com que te adivinho, o tempo onde
a vária dor envolve o barro e a estrela, onde
o encanto liga a ave ao trevo. E em sua medida
ingénua e cara, o que pressente o coração
engasta seu contorno de lume ao longe.
Bom será o tempo, bom será o espírito,
boa será nossa carne presa e morosa.
- Começa o tempo onde se une a vida
à nossa vida breve.

Estás profundamente na pedra e a pedra em mim, ó urna
salina, imagem fechada em sua força e pungência.
E o que se perde de ti, como espírito de música estiolado
em torno das violas, a morte que não beijo,
a erva incendiada que se derrama na íntima noite
- o que se perde de ti, minha voz o renova
num estilo de prata viva.

Quando o fruto empolga um instante a eternidade
inteira, eu estou no fruto como sol
e desfeita pedra, e tu és o silêncio, a cerrada
matriz de sumo e vivo gosto.
- E as aves morrem para nós, os luminosos cálices
das nuvens florescem, a resina tinge
a estrela, o aroma distancia o barro vermelho da manhã.
E estás em mim como a flor na ideia
e o livro no espaço triste.

Se te apreendessem minhas mãos, forma do vento
na cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o meu sangue.

Beijar teus olhos será morrer pela esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha voz.

As águas que um dia nasceram onde marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a montanha
inspirada, o mar, os centauros do crepúsculo
- aspiram longamente a nossa vida.

Por isso é que estamos morrendo na boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho, no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a vida.

Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo.

E peço ao vento: traz do espaço a luz inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições, cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.

De meu recente coração a vida inteira sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas com uma espuma
de crepúsculos e crateras.

Ó pensada corola de linho, mulher que a fome
encanta pela noite equilibrada, imponderável -
em cada espasmo eu morrerei contigo.

E à alegria diurna descerro as mãos. Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em cada espasmo
eu morrerei contigo.

quarta-feira, 21 de novembro de 2012

Coisas a espreitar

Tenho andado a pensar muito sobre o tema ultimamente, como deve ter reparado quem me segue. E depois de Badiou (de cuja análise não me afasto), deixo aqui mais umas sugestões para quem quiser compreender um pouco mais sobre o que é e como se manifesta esse tal sentimento?/ estado?/ ilusão?/ processo?/ relação?/ partilha?, caso seja possível aprender e compreender algo de tal magnitude e, muito mais, tentar, de certa forma, colocar essa aprendizagem em "práctica" (mesmo que eu não seja de opor teoria a práctica).
Aquiaqui, e, também, aqui e aqui. E, já agora, isto:

P.S. Dispeço-me por uma interpretação que gosto bastante, apesar de relativamente simples.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012


"Há o perigo de um grito lindíssimo quando andas assim comigo no invisível."
Mário Cesariny

um dedo após dedo que já não dedo e outra coisa agora
pois dada a perda na sequência passa-se a dedo
antecedendo outra coisa que não sei precisar

no plano do qual a janela me separa
- sem separar completamente -
imagino algo que pela sua condição
não mais para além de imaginação
- havendo um mais para além da imaginação

sexta-feira, 16 de novembro de 2012


“Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.

As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.

Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.”

Memória - Carlos Drummond de Andrade

quarta-feira, 14 de novembro de 2012


“Não digas: “o mundo é belo”. Quando foi que viste o mundo? Não digas: “o amor é triste”. Que é que tu conheces do amor? Não digas: “a vida é rápida”. Como foi que mediste a vida? Não digas: “eu sofro”. Que é que dentro de ti és tu? Que foi que te ensinaram que era sofrer? Os teus ouvidos estão enganados. E os teus olhos. E as tuas mãos. E a tua boca anda mentindo, enganada pelos teus sentidos. Faze silêncio no teu corpo. E escuta-te. Há uma verdade silenciosa dentro de ti: A verdade sem palavras que procuras inutilmente, há tanto tempo, pelo teu corpo que enlouqueceu.”

Cecília Meireles

segunda-feira, 12 de novembro de 2012


diz que não sabe do medo da morte do amor
diz que tem medo da morte do amor
diz que o amor é morte é medo
diz que a morte é medo é amor
diz que não sabe

Alejandra Pizarnik

(Encontrado aqui: http://www.facebook.com/FabricaEscrita )

sábado, 10 de novembro de 2012

Amor e Badiou


Alain Badiou, filósofo francês, tomado por Zizek como um Platão ou um Hegel, é um dos poucos na sua área - ver aqui - que se dedicam a reflectir sobre Amor. Recentemente foi editado em livro uma espécie de entrevista que Badiou concedeu sobre este tema, como o título "In Praise of Love", e em relação ao qual resolvi deixar neste blogue os seguintes excertos:


"I think - in quite different terms, naturally - along the same lines, namely that love encompasses the experience of the possible transition from the pure randomness of chance to a state that has universal value. Starting out from something that is simply an encounter, a trifle, you learn that you can experience the world on the basis of difference and not only in terms of identity. And you can even be tested and suffer in the process."

"Provided it isn’t conceived only as an exchange of mutual favours, or isn’t calculated way in advance as a profitable investment, love really is a unique trust placed in chance. It takes us into key areas of the experience of what is difference and, essentially, leads to the idea that you can experience the world from the
perspective of difference. In this respect it has universal implications: it is an individual experience of potential universality, and is thus central to philosophy, as Plato was the first to intuit." 

"Jacques Lacan reminds us, that in sex, each individual is to a large extent on their own, if I can put it that way. Naturally, the other’s body has to be mediated, but at the end of the day, the pleasure will be always your pleasure. Sex separates, doesn’t unite. The fact you are naked and pressing against the other is an image, an imaginary representation. What is real is that pleasure takes you a long way away, very far from the other. What is real is narcissistic, what binds is imaginary. So there is no such thing as a sexual relationship, concludes Lacan. His proposition shocked people since at the time everybody was talking about nothing else but “sexual relationships”. If there is no sexual relationship in sexuality, love is what fills the absence of a sexual relationship.
Lacan doesn’t say that love is a disguise for sexual relationships; he says that sexual relationships don’t exist, that love is what comes to replace that non-relationship. That’s much more interesting. This idea leads him to say that in love the other tries to approach “the being of the other”. In love the individual goes beyond himself, beyond the narcissistic. In sex, you are really in a relationship with yourself via the mediation of the other. The other helps you to discover the reality of pleasure. In love, on the contrary the mediation of the other is enough in itself. Such is the nature of the amorous encounter: you go to take on the other, to make him or her exist with you, as he or she is. It is a much more profound conception of love than the entirely banal view that love is no more than an imaginary canvas painted over the reality of sex.

In fact, Lacan also engages in philosophical ambiguities in relation to love. The idea that “love is what fills the absence of a sexual relationship” can indeed be interpreted in two ways. The first and most obvious is that love is what the imagination employs to fill the emptiness created by sex. (...) But Lacan also thinks quite the opposite, that love reaches out towards the ontological. While desire focuses on the other, always in a somewhat fetishist manner, on particular objects, like breasts, buttocks and cock... love focuses on the very being of the other, on the other as it has erupted, fully armed with its being, into my life thus disrupted and re-fashioned."

"I mean truth in relation to something quite precise: what kind of world does one see when one experiences it from the point of view of two and not one? What is the world like when it is experienced, developed and lived from the point of view of difference and not identity? That is what I believe love to be."

"When I lean on the shoulder of the woman I love, and can see, let’s say, the peace of twilight over a mountain landscape, gold-green fields, the shadow of trees, black-nosed sheep motionless behind hedges and the sun about to disappear behind craggy peaks, and know - not from the expression on her face, but from within the world as it is - that the woman I love is seeing the same world, and that this convergence is part of the world and that love constitutes precisely, at that very moment, the paradox of an identical difference, then love exists, and promises to continue to exist. The fact is she and I are now incorporated into this unique Subject, the Subject of love that views the panorama of the world through the prism of our difference, so this world can be conceived, be born, and not simply represent what fills my own individual gaze. Love is always the possibility of being present at the birth of the world."

"I think we should approach the question of love from two points that correspond to everyone’s experience., love involves a separation or disjuncture based on the simple difference between two people and their infinite subjectivities. (...) In other words, love contains an initial element that separates, dislocates and differentiates. You have Two. Love involves Two.

The second point is that precisely because it encompasses a disjuncture, at the moment when this Two appear on stage as such and experience the world in a new way, it can only assume a risky or contingent form. That is what we know as “the encounter”. Love always starts with an encounter. And I would give this encounter the quasi-metaphysical status of an event, namely of something that doesn’t enter into the immediate order of things. (...) The encounter between two differences is an event, is contingent and disconcerting, “love’s surprises”, theatre yet again. On the basis of this event, love can start and flourish. It is the first, absolutely essential point. This surprise unleashes a process that is basically an experience of getting to know the world. Love isn’t simply about two people meeting and their inward-looking relationship: it is a construction, a life that is being made, no longer from the perspective of One but £rom the perspective of Two. And that is what I have called a “Two scene”."

"However, love cannot be reduced to the first encounter, because it is a construction. The enigma in thinking about love is the duration of time necessary for it to flourish. In fact, it isn’t the ecstasy of those beginnings that is remarkable. The latter are clearly ecstatic, but love is above all a construction that lasts. We could say
that love is a tenacious adventure. The adventurous side is necessary, but equally so is the need for tenacity. To give up at the first hurdle, the first serious disagreement, the first quarrel, is only to distort love. Real love is one that triumphs lastingly, sometimes painfully, over the hurdles erected by time, space and the world."

"I am really interested in the time love endures. Let’s be more precise: by “endure” one should not simply understand that love lasts, that love is forever or always. One has to understand that love invents a different way of lasting in life. That everyone’s existence, when tested by love, confronts a new way of experiencing time. Of course, if we echo the poet, love is also the “the dour desire to endure”. But, more than that, it is the desire for an unknown duration. Because, as we all know, love is a re-invention of life. To re-invent love is to re-invent that re-invention."

"I believe that love is indeed what I call in my own philosophical jargon a “truth procedure”, that is, an experience whereby a certain kind of truth is constructed. This truth is quite simply the truth about Two: the truth that derives from difference as such. And I think that love - what I call the “Two scene” - is this experience. In this sense, all love that accepts the challenge, commits to enduring, and embraces this experience of the world from the perspective of difference produces in its way a new truth about difference."

"But chance, at a given moment, must be curbed. It must turn into a process that can last. This is a very difficult, almost metaphysical problem: how can what is pure chance at the outset become the fulcrum for a construction of truth? How can something that was basically unpredictable and seemed tied to the unpredictable vagaries of existence nevertheless become the entire meaning of two lives that have met, paired
off, that will engage in the extended experience of the constant (re)-birth of the world via the mediation of the difference in their gazes? How do you move from a mere encounter to the paradox of a single world where it is revealed that we are two? It is a complete mystery. And this is what really nourishes scepticism about love. People will say, why talk about great truth in respect of the quite banal fact that So and So met his or her colleague at work? That’s exactly what we must emphasise: an apparently insignificant act, but one that is a really radical event in life at a micro-level, bears universal meaning in the way it persists and endures."

"That is how chance is curbed: the absolute contingency of the encounter with someone I didn’t know finally takes on the appearance of destiny. The declaration of love marks the transition from chance to destiny, and
that’s why it is so perilous and so burdened with a kind of horrifying stage fright. Moreover, the declaration of love isn’t necessarily a one-off; it can be protracted, diffuse, confused, entangled, stated and re-stated, and even destined to be re-stated yet again. That is the moment when chance is curbed, when you say to yourself: I must tell the other person about what happened, about that encounter and the incidents within the encounter. I will tell the other that something that commits me took place, at least as I see it. In a word: I love you. (...) It isn’t at all easy to say “I love you”. That small sentence is usually thought to be completely meaningless and banal. Moreover, people sometimes prefer to use other more poetic, less commonplace words to say “I love you”. But what they are always saying is: I shall extract something else from what was mere chance. I’m going to extract something that will endure, something that will persist, a commitment, a fidelity. And here I am using the word “fidelity” within my own philosophical jargon, stripped of its usual connotations. It means precisely that transition from random encounter to a construction that is resilient, as if it had been necessary."

"The problem then resides in inscribing this eternity within time. Because, basically, that is what love is: a declaration of eternity to be fulfilled or unfurled as best it can be within time: eternity descending into time. That’s why it is such an intense feeling. (...) So love remains powerful, subjectively powerful: one of those rare experiences where, on the basis of chance inscribed in a moment, you attempt a declaration of eternity. “Always” is the word used to declare eternity. Because you cannot know what that “always” means or how long it will last. “Always” means “eternally”."


sexta-feira, 2 de novembro de 2012

a tentação de apagar o olhar
a visão fora e o olfacto e a audição à espreita
o olhar invertido e no olhar invertido
a tua voz, a tua voz
o corpo da tua voz em recordação
o corpo da tua voz em recordação e algo para lá da recordação
os olhos de novo, como se acordado em sobressalto
a respiração para lá do respirar pedindo ajuda à boca
sendo que da boca som outro fora
não sendo o de uma inspiração improvisada
palavra alguma pertencente a esta garganta incapaz
e algo que um pouco após a garganta
algo presente após canais que como espinhos se fazem sentir
igualmente incapaz

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

do tempo nada considerei
não concedendo desse modo ao tempo
tempo algum a alcançar o tempo desejado

a memória irá impor-se, certo que irá
como presença da situação criada
num momento de espontaneidade vincada

entra assim em cena a descontinuidade
que separa a anterior perspectiva futura
da carga que será recordação perpétua

terça-feira, 30 de outubro de 2012

há algo que te quero dizer
que sei que te devo dizer
(seja qual for a consequência associada)
ainda que não sei bem como to dizer
(pelo menos de uma forma correcta)

e esse algo
é algo que te vou dizer
ainda hoje, acredita

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

fecho os olhos
procuro fechar os olhos, devo fechar os olhos
e suster a respiração, a vontade de chorar
que me chega como necessidade, um impulso
a reprimir, enrugando a face

sendo que é do ti que fujo
é de ti que devo fugir, de ti me devo fazer fugir
isto por não resistir às palavras que gramaticalmente
se alinham aos teus lábios, à tua face, aos teus membros
ao teu corpo, espontaneamente

e apesar do meu sorriso, da minha atenção
nada sei do como te acompanhar
e paralisa-me o pensamento, saber que é apenas do teu abraço
que necessito para, finalmente, transbordar

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

há em mim
o ser que surge quando contigo
a atenção que às tuas expressões dedico
como se, fechados os olhos
mentalmente seguisse as notas de um violino
sendo a melodia o teu sorrir
acompanhado pelo conjunto que se forma
e que se estende até aos teus olhos, os teus cabelos
a tua face, tu por inteiro

as preocupações afastam-se
e algo em mim tende a escapar-se
viro os olhos um segundo
e uma porta com o vento aberta
sem que nada capaz de fazer dado que sem chave
- ou sem a saber usar -

as frases mais soltas num instante
as frases pela boca sem delas dar conta
procurando, ao que me apercebo, seguir a melodia
ao mesmo tempo que do vulcão
- juro que, por aí, um vulcão
medindo movimentos -
um sorriso que me desperta da distraída contemplação
um pulsar mais quente e vigoroso comprovando a existência

e há em mim
o ser que aparece quando de ti afastado
aquele que dessa distância
- e por essa distância -
se torna consciente do quão presente te tornas
dado que após, entre ruas, esquinas, multidões
um sorriso que me invade a face
um suspiro que antecede um respirar convicto
como se com a inspiração tu, após a inspiração
a tua voz de novo, a necessidade da tua voz de novo...

e esses dois seres
- tão estranhos para mim, ainda que em mim -
quebram as dúvidas que poderia ter
em relação ao que sinto
lembre-me eu da sua materialidade
e os consiga fazer nascer

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

o chão folhas, pequenos galhos
papéis que anteriormente algo
por hora segregando
- mesmo sem que ninguém perto -
que das gotas sinal algum
e estas bolsas razão outra

e assim certo que a chuva um outro plano
- juro que a chuva lá fora um outro plano -
próprio de sapatos ensopados, e fora
artimanhas associadas à arte de galgar janelas
pontos no vidro à socapa que se agigantam a ilusões de óptica
não esquecer, contudo, as correrias, o splash
os risos incompreensíveis de quem as gotas compreende, eu não
dado que pela mesma fonte eu não aqui

vozes jorrando, o meu ouvido maior - outro lugar -
ondas em propagação, uma abertura
e num instante adeus - agora sim, a chuva -
o olhar mudo de pescoço estendido, um segundo
pertencente à janela de trás de qualquer táxi
táxi esse que não reconheço, condutor não vi
e o adeus reforçado, o adeus repetitivamente
a minha memória o adeus
sendo que o adeus também um rosto
e o rosto um anterior sorriso, sons com o sorriso
expressões gestos vozes

um peso a chuva, a chuva um peso
as gotas em suspenso, queda nenhuma

voltando atrás, talvez galhos o chão

Não estou habituado
a que o coração bata sem doer

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

deixava os passos para trás
imersos num qualquer plano da calçada
enquanto um carro subia a rua
e dele só tomava consciência já longe
em surdina, num qualquer virar

ainda que para trás não só calçada
no caso de ter sido calçada o que pisei

sem que me sugasse o olhar
vozes incomprenssíveis a curta distância
ao passar notei alguém no seu corpo mas longe de si
decorando uma saída de metro, aquela hora saída nenhuma

a atravessar a rua tomava nota das montras
                                           caso o seu olhar mo permitisse
                                           caso o seu olhar não exigisse o meu
                                           caso o seu olhar não intimidasse o meu
na procura de um reflexo, finalmente socorrido
por uma claridade fora de horas

e ouvia-a

e ouvia-a, pensando no que falar
ouvia-a com receio de minhas parcas palavras
ouvia-a e as suas palavras ganhavam forma em mim
ouvia-a como se de uma melodia se tratasse

um rio irrompeu pela avenida
sem que qualquer um de nós alterasse o ritmo de passeio
e onde outrora veículos deslizaram aves, em refúgio da Lua

o não reconhecimento do terreno não se revelou pernicioso
tendo as nossas voltas alcançado o ponto anteriormente definido
pátio interior como ante-câmara, viagem ao fechar de um bar
palavras que se seguiram sem em nada pensar
a certeza no regresso de um dado sentimento

terça-feira, 9 de outubro de 2012

um desejo
poder falar-te sem do meu tom desconfiar
sem receio dos sentidos a que me poderia envolver
livrar-me da mão reticente, trepando a nuca
esquecida a vasculhar espaços que se apresentam
baixando o olhar de forma a disfarçar
o olhar que enquanto distraído te lanço
deslocando-me
e que jurava ver devolvido
tomo-o como devolvido, absorto em mil cogitações...
de repente estás ao meu lado, prestes a sussurrar-me qualquer coisa
mesmo que distante, mesmo que da minha distracção
resposta alguma
e, no entanto, desejando ser eu capaz de
um toque natural após dado, sem que previsível antes de o fazer

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

a mesa vê-se cotovelada
dedos que se agigantam e num instante
os cinco agarrados sem que atente aos cinco agarrados
os cinco agarrados por si numa cartilagem que inquirirá a matéria
a chegada é audível mas do outro lado do tampo
resposta alguma, resposta alguma no mesmo tom
já que decerto ondas sonoras galgando o meio
e pela chegada, ou pelas ondas, ou pelas duas
ergo lentamente o pescoço, redefino a visão
deslocando-a do plano das paredes em que me encerro
para o plano para lá destas paredes
longe dos sentidos
que se encerram nesta divisão, sentidos não esquecidos, possivelmente
e que se metamorfoseam na cadeira em que baloiço
com o seu ranger, com a sua rugosidade advinda do uso
fosse ele qual fosse, e que agora de nada serve recordar
os sentidos estas pequenas folhas pelo chão
e o próprio chão como sentido
mas sentidos esses agora para trás, nem que se tornem apenas momentaneamente para trás
e agora o lá fora, seja o lá fora para o qual agora me viro desta janela o que for
e que poderá ser o carro que me foge lentamente da visão
e cujo significado desconheço, mas cujo barulho se estende mesmo após o seu escapar
da visão que agora da rua apenas a rua
sabendo, contudo, que a rua não só a rua
e a minha face que agora examino no vidro
com a rua em contexto a minha face no vidro
mas não devo jurar que a minha face no vidro
talvez se torne mais fácil garantir o vento
 e o que a ele se prende ao mover-se
um chapéu tornado ave rodopiante com uma pessoa de mãos estendidas a reboque
ainda que do chapéu sinal nenhum em instante
sinal sim
dos braços estendidos que depressa se unem aos joelhos
e que acompanho sem pestanejar numa respiração que se evaporou com o olhar

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

o moinho gira
sem que de vento nada
e gira só por o imaginar

na rocha onde me estendo
ainda que não enganando o Sol
a minha sobe e desce um pó que se elimina

não me custa ver o moinho assim
mesmo sabendo que apenas por meus olhos gira

já não, mas gira

terça-feira, 18 de setembro de 2012

é só
que a solidão e o silêncio
se revelam mais inatingíveis


um nunca está só
quando as faces se tornam idênticas
os lugares marcados pela mesma ausência

correr para a confusão alheia
não é mais do adiar esse reencontro
certo em suceder-se



segunda-feira, 17 de setembro de 2012

talvez deva saltar
ver o muro aproximar-se
sem ligação ao meu mover
e sem olhares denunciantes
apoiar-me por inteiro no gradeamento
e aterrar as solas e alguns dedos
nessa nova calçada

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

da suposta ilusão das emoções


a solução seria ter a capacidade de
com um movimento rápido e decidido
abrir o meu corpo e arrancá-lo, sem hesitações

observaria sem nada dizer o sangue
a escorrer entre os dedos e tudo a manchar
as minhas mãos a surpreenderem-se com a forma

poderia, enfim, descansar
a circulação parava em menos de um instante
e livrar-me-ia da massa de ar que usualmente inspiro

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Uma ausência, quando é sentida, nunca é uma ausência. Tal como um afastamento. Não acredito em curas de tempo, em especial quando este deixa de existir. E esperar que o tempo ressurja não é mais do que dormir indefinitivamente. Vivendo num misto de sonhos que não se realizam e pesadelos diários, alimentados por essa mesma indefinição que é a não-presença de alguém de quem ainda não nos conseguimos separar, mesmo que o que se tenha tido não seja mais do que silêncio.


e, de repente, uma pessoa muda a direcção do olhar
razão nenhuma para tal, por vezes a procura duma posição
e ao mover o olhar algo, ou nem necessariamente algo
poderá ser apenas um corte com o momento anterior
mas o nosso coração salta, pelo menos o meu sim
a própria respiração parece querer agarrar a nova dimensão
mas o curioso é que a maior parte das situações nada
ou talvez até nem seja assim tão curioso como digo
mas o que me acontece é que após o inquirir que surge
reparo que as diferenças para a situação anterior são diminutas
e tendem a encurtar-se cada vez mais, alongando assim
o momento anterior, apenas com um sobressalto pelo meio
e é todo o peso que ressurge, apertando, levando às últimas
sempre assim, com os sons ínfimos de volta, a espessura do ar
merda para a espessura do ar, para os seus gases e partículas
para esta respiração continuamente descontrolada
até uma nova descontinuidade, já que por agora
sem esperanças para um virar de páginas completo
a atravessar o lago
notei os meus pés algures
isto porque a temperatura sentida
em especial à hora em questão
não me impedia de mover

ainda que, só um pouco depois
acabei por olhar para baixo
e reparei que nada mais da cintura para baixo
do que partículas de ar entre mim
e o plano de água

acabei por continuar
até porque nem lhes sentia assim tanto a falta
e, inclusive, passado algum tempo
enquanto seguia o reflexo que surgia desde a margem
acabei por me habituar à sua ausência

eram as árvores, julgo que eram as árvores
mais concretamente traços das suas copas
e um pouco do tronco, o que via
ainda que não fossem essas imagens, decerto
a origem das falas em tom de assobio

no entanto, tenho de o admitir
também não eram esses sons que me apoquentavam
se havia alguma coisa sequer que o chegava a fazer
e, como última recordação, antes do recuperar do meu corpo
tenho apenas a rocha sobre a qual me encostei antes de fechar os olhos


terça-feira, 11 de setembro de 2012

a porta fechou-se em estrondo
o que me faz sobressaltar
os pés ganharam vida e rodei de imediato o pescoço
decerto o vento, solto por aí
ninguém que tenha notado e um frio de repente


__________
À navegação: as coisas voltaram a complicaram-se, e eu também já deveria saber que não posso prometer aquilo que nem sequer de forma auto-consciente poderá depender de mim. Mas não se habituem, assim também o espero.

terça-feira, 4 de setembro de 2012

para uma práctica da não-comunicação





Isto tende a tornar-se hábito, espero que me perdoes. A porta não estava trancada e acabei por me decidir a entrar.. ninguém respondia. Não estou certo que tenhas ouvido, talvez a música que saí do teu portátil, ali ao canto, não o tenha permitido. Entretanto, sento-me aqui no chão, encostado ao sofá, como gosto, pensando no que depois te direi após um pequeno fôlego... espero não incomodar. Vim a andar desde casa e sinto-me um pouco cansado. Reparei da rua que mantens o hábito da janela aberta... imaginava-te na varanda, mesmo não te tendo visto. Não sei se alguma vez te contei, mas gosto especialmente da sensação de ouvir os carros passar, ou qualquer outro ruído constante que se torna ao mesmo tempo distante, incapaz de galgar paredes ou, por exemplo, subir este prédio e saltar a varanda. Mas o que estou eu para aqui a pensar... e porque ainda não te disse nada desde que me sentei?, mantendo-me para aqui a inquirir o chão. Ahh!, agora reparo... estás concentrada nalguma foto que pensas tirar, ou será que simplesmente tens a máquina contigo, como que esquecida, mas pronta para disparar a qualquer instante. O que estás a fotografar?
Não sei se te conte, mas durante todo o caminho não pensei em mais nada. Até aqui chegar deparei-me apenas com uma face, uma fachada que se repetia em todos os edifícios, independentemente da altura ou função, a calçada apresentava constantemente buracos surpreendentes, nas montras o mesmo produto repetia-se, ao atravessar a passadeira que me acompanhava sempre o mesmo veículo a parar, rès-ves às minhas pernas mas longe apesar das buzinas e dos punhos que erigia. Não sei como reparei na tua porta, ainda que me lembre de a primeira distinção ter sido a tua janela aberta. Não me lembro de quanto tempo demorei até aqui chegar. Ela não me disse nada não, eu também estou preocupado. Achas mesmo que é isso? E como te dizer que não consigo pensar senão nos teus lábios quando falas? Provavelmente tens razão, mas não é fácil dizer-lhe isso... para além de que, já o deves saber, não consigo ter uma visão tão dicotómica. Não, com isto não estou a defender ninguém, acredita que não. Mas bem, ia-te contar da minha vinda até cá, do que me aconteceu quando vinha para cá. Em relação à minha vinda até cá tenho a dizer que não faço a menor ideia do que pretendes fotografar, se fotografar pretendes sequer. O teu rosto esconde-se na direcção dessa janela mas dos teus olhos nada, impossibilidade física de me encontrar onde me encontro, estás de costas voltadas para mim. Estará a câmara esquecida nas tuas mãos, será que deverei dizer-te que te esqueceste de uma câmara nas mãos? Estupidez minha, decerto tu à espera de alguma coisa, talvez um pássaro que suba, uma parede que mude de significado numa outra perspectiva. Talvez se eu me mover um pouco perceba, espero não te desconcentrar com o barulho que faço ao mover-me, com o meu próprio movimento. Se por acaso eu numa qualquer sombra, a fazer alguma sombra, simplesmente diz pira-te daí, que eu, como é óbvio, piro-me. Espero não estragar uma possível foto ao perderes uma perspectiva.
Mas estava-te a falar da minha viagem até cá... Pois bem, como deves saber ainda não me oriento muito bem por estes sítios, e com a minha habitual tendência para  a dispersão acabei por andar uns quantos quilómetros a mais até aqui chegar. Esta zona apresenta ruas muito parecidas, é estranho. Dás por ti e vês-te no mesmo local, ou no que julgas ser o mesmo local por onde supostamente havias passado. Não, não te preocupes, estou bem assim, obrigado... ainda a recuperar o fôlego. Ah, as ruas, sim, as ruas.. andei devagar, sempre inquirindo os nomes que surgiam de qualquer placa ou sinal, a largura das estradas, a morfologia do edificado, questionando-lhe se por acaso não teria becos, caminhos repetidos como destino. Acho que acabei por reconhecer um ou outro local, ou pelo menos pareceu-me reconhecê-los não sei ao certo porque razão, talvez já tenha passado por eles em uma qualquer ocasião, uma passagem de carro, um postal, uma saída de qualquer tipo. 
Não sei se me apetece. Um suspiro... Tens razão, devo ser eu a implicar, provavelmente até posso estar a levar-me por uma qualquer imagem pré-concebida, algo que eu odeio fazer mas a que também não sou imune. Não, assim acho que não me conseguiria divertir, e iria ser um fardo para vocês. Convidaram-te, foi? Também me parece, mas, mesmo assim, acho que devias. Estás completamente absorta, não faço é a menor ideia onde. Não sei ao certo porquê mas lembrei-me de agora de uma coisa, não sei se te lembras-te de eu sentado ao teu lado numa manhã, após ter aparecido um pouco mais cedo ou talvez tu atrasada, já não sei há que tempo, ainda que me recordo de fazer-te sorrir com as parvoíces que ia dizendo, ainda que  tu depois me tivesses tomavado como culpado dos minutos a mais e de qualquer erro na maquilhagem. Como eu adoro esse momento, a observar-te, sem que tu me censurasses o olhar, ora no espelho, ora directamente na tua face, inquirindo eu que mistérios seriam esses que causavas com as tuas mãos, parece que feitas de propósito para tal acção, e que fazem surgir, a pouco e pouco, novos olhos, novas sobrancelhas... Admirou-me essa metamorfose, dado que tanto gostava do ponto de partida como do de chegada, ainda que, lembro-me bem, não tivesses gostado que eu igualiza-se os dois momentos, talvez pensando que eu responderia por responder, incapaz de saber observar a diferença, não fazendo tu a mais pequena ideia de que género era a minha admiração.
Esta aí alguma coisa? Esse levantar do queixo denunciou-te. Irás fotografar agora? Sim, ouvi... tu também? Não, só agora. Achas que é algo lá fora? Vou ver. Estás mesmo absorta, nem te levantas, não alteras o equilíbrio, nem comigo a passar quase em cima de ti, nem ao perguntares-me o que poderá ser este barulho. Não, nada. A sério, não vejo nada. Também me parece estranho mas juro-te que nada. Nota-se que uma ou outra pessoa andam de forma estranha. Uma delas vai andando e virando constantemente a cabeça para trás, mas não vejo nada. Provavelmente algum carro, o qual já deve ter cruzado a rua. Porque tens este candeeiro ligado, em plena luz do dia, semi escondido pelos cortinados, junto à janela? Provavelmente não me responderias mesmo que te perguntasse. Ainda que, tenho de conceder, mesmo assim tens a sala pouco iluminada. No café do outro lado da rua?, espera. Bem... estão duas pessoas numa mesa, frente a frente falando uma com a outra, junto ao vidro. Daqui não consigo ver mais ninguém. Achas que o barulho pode ter vindo de lá? Continuas imóvel, e nem uma palavra.
Esta foto que tens na parede é nova, não é? Bem me parecia, não a estava a reconhecer. A cara atrás da máquina, o cabelo encobrindo a face e a máquina, a cair, metade atrás do ombro outra metade à frente, uma perna cruzada que faz subir a roupa e põe a nu pouco mais do que o calçado usado. O corpo ligeiramente inclinado procura algo que a fotografia não revela. Os membros parecem estar em auxílio a uma qualquer divindade, encarregados do principal objecto sagrado. No chão algo perdido, nota-se que se trata de um espaço degredado, ou, talvez, abandonado. Um objecto que não sei explicar à sua frente, a cair pela imagem. Na foto alguém exterior ao ambiente envolvente, não se sabendo se introduzindo conflito a sua presença ou a representação posterior a ser revelada através da câmara, talvez as duas. Uma presença que apesar do possível cuidado nos seus movimentos capaz de alterar à posteriori a disposição do espaço, a forma dos objectos, mesmo quando distante. Ias dizendo? Ah, desculpa, tinha-me esquecido da luz. Essa máquina não ajusta muito bem a luminosidade existente, pois não? Sim, sim, eu tenho noção que mesmo assim é bastante melhor. Estava a falar só por falar. A falar que caso tu fotografes de certo uma borboleta surge debaixo das tuas mãos. Vai daí talvez não uma borboleta, porquê uma borboleta afinal?, és capaz de me responder? Qual é o modelo, sabes? A borboleta fora da equação. De facto, a borboleta para quê?, estupidez minha. Sim, é óbvio que sabes, perguntei por perguntar. Não, tudo bem... porquê? Da borboleta nada, necessidade nenhuma, acrescento algum. Borboleta fora.
Espero que o meu movimento ao voltar onde estava não te incomode. Agacho-me de novo junto ao sofá, como bem gosto. Pernas cruzadas, ideias para esconder as mãos quando a mais, quando não irrequietas por mim, galgando a minha face, apertando o meu cabelo. Como dirias a alguém? Não sei ao certo como o pôr e não sei se tenho mais medo que não compreendas esta minha dúvida ou, mesmo se a compreendas ou não, será que após ter dito o que queria dizer, ultrapassando assim esse primeiro ponto, me pedirias para repetir, como seu um erro meu no discurso, uma oportunidade para dizer que, afinal, estava a brincar, deixa para lá. Mas bem, é um pouco como aquela sensação que se apodera de ti e que parece apenas passível de ser derrotada ou pelo desespero ou por uma situação fortuita que a possa desbloquear. Vou tentar ser mais claro, enquanto te vejo, assim, sentada, imersa nos teus pensamentos, o que faz com que a minha certeza de que era sobre ti que queria falar se redobra. Não sei ao certo se já notaste algo, ou se haverá algo por notar, como sejam estes movimentos mais rápidos e desconexos por parte das minhas mãos, mesmo quando sentado como estou agora, dono de um olhar à procuro de um foco pelo chão, juro que qualquer coisa perdida por aqui. Bem, mas agora que penso que melhor, talvez até não seja sobre ti que queria falar. Quer dizer, não só sobre ti, ahh ...,  parte difícil agora, bem, como o dizer..., era sobre ti e o que poderia ser um nós, caso tenha eu sorte em que tal ser se materialize. Não me pareces estar a achar muita graça, e a verdade é que quanto mais te vejo a brincar com a câmara e a imaginar as tuas futuras fotos mais medo tenho de te dizer algo, de quebrar esta aparente harmonia com conversas que apenas sei ter comigo, perdido a imaginar, mas que facilmente me tendem para uma voz gaga e hesitante. Ahh?, não não, obrigado, estou bem assim, não é preciso nada, a sério. O que é mesmo que estás a pensar fotografar? Incrível como esta sala pequena de repente. Os móveis não cresceram? Ah!, sim, claro, parece-me óptimo. Não, falo a sério, em especial pelo contraste. Sim, pelo contraste, tanto em relação à cor como ao que pretendes representar, não te parece? A sério que não mudaste os móveis?
Ah, a minha viagem de hoje. Bem, tu sabes, nada de especial, e acabei por nem me perder muito. Juro, foi um instante até cá chegar. Provavelmente deixarás de me falar, nem que digas que seja só por um momento, talvez até as coisas acalmaram, demorem o tempo que for necessário, e tudo será como dantes como se de um pequeno corte temporal se tratasse. Talvez, quem sabe, uma história que dará para rir no futuro. Apenas no futuro, que isso fique bem claro. Agora... quem chegará mais depressa ao futuro? Verdade que caminhos mais longos, mais curtos, andar para a frente, para trás, parado, mais depressa, mais devagar. Baixas a câmara? Vais a algum lado? O que procuras, aí?, na varanda. Inclinas o teu corpo e apoias-te na grade da varanda... para onde olhas? Agora baixas o olhar, noto que torces o lábio. Levantas um pouco o joelho, consequência de um pequeno rodar que infliges ao teu pé direito, não sei se conscientemente.
Não te posso pedir que te sentes aqui, no chão, encostada ao sofá, ao meu lado. Eu não posso intrometer-me nessa varanda, seguir o teu olhar. Para além de um acesso não permitido, vejo-me aí e aposto que nem um pio, sem coragem para perguntar e tu, como vais? Aposto que diminuaria uns 10 centímetros numa fracção de segundoAcho que seria capaz de esquecer por instantes o que tenho acumulado e acumulado e nada ter sido capaz de articular, para poder ouvir-te um tempinho, isto caso necessitasses. Acho, pois talvez não fosse capaz, ou então guardaria tudo para depois, assim me fosse possível. Ainda que provavelmente esteja para aqui a imaginar coisas. É verdade, existem pensamentos, imagens que aqui e acolá me invadem, sentimentos, mas como ordenar tudo isto? Repito o teu nome em voz baixa mas assertiva quando não o podes ouvir. Respiro ofegantemente, como talvez já tenhas notado, mesmo daí onde te encontras, e, por vezes, tenho vontade de partir alguma coisa, de agarrar em alguma coisa e... Fazendo fé às sensações que tenho não tarda vomito. Há lavos de tensão que me paralisam. Uma sensação de fraqueza nos membros, com especial destaque para os meus pulsos, demasiado fracos para articular as minhas mãos. Há um calor que me invade o coração, por uma artéria qualquer repleta de espinhos. Sinto um medo dos demónios, vontade de me desligar do resto. Tenho granadas pelo peito, acabadas de acordar, não sei quando param e se sequer deixarão destroços. Ouviste? O barulho de novo?, o que havia de ser? Pareceu-me ouvi-lo de novo.




P.S. Agora perdoe-me, mas vou arrastar-me por aí. Como muletas Philippe Garrel, Vodka (muita Vodka), becos duvidosos apenas com uns candeeiros muito espaçados como companhia, e o que me resta de me lucidez para tentar evitar a tentação de superfícies cortantes. As sensações passaram de uma violência intermitente para uma melancolia constante, um peso constante, um aperto que por vezes me paralisa. A resposta também terá de ser diferente. Continuo na merda, bem verdade, mas agora já sem vontade nenhuma de escrever, de falar, de ouvir. Estou a absorver tudo, em frequências que só eu capto. Tenderei a ficar bastante susceptível, facilmente irritável se passado um certo limite, limite esse em constante mudança. Cada poro do meu corpo é tensão, e apenas momentaneamente adormece ou luto para a disfarçar. Passou o tempo em que seria capaz de lidar com isto e sentir-me capaz de seguir em frente, de ultrapassar esta fase. Agora, já não.


domingo, 26 de agosto de 2012

Interlúdio para breve auto-crítica literária


Não sei se será defeito de formação, até porque muito do que escrevo já era influenciado pelo espaço antes de pensar o que iria seguir, mas a verdade é que ao ler este diálogo entre Nuno Portas e Álvaro Siza Vieira não consegui deixar de me rever. Aliás, no texto que vos prometi aqui há uns tempos, e no qual quase não tenho pegado a sério ainda que ande sempre com ele, tal marca é clara.

"Nuno Portas -(...) Mas os espaços vazios não são sobras, são formas que ordenam a cidade. (...)
Álvaro Siza Vieira - Embora as formas também sejam construcções.
NP - Claro, porque estes vazios não são nada vazios.
ASV - Também há a tendência contrária. Quando há um espaço é preciso enchê-lo com qualquer coisa. Estátuas, bancos, caixotes do lixo. Não sou contra, mas denota um horror ao vazio que não anda muito longe do horror ao silêncio.
NP - Os vazios são formas que ordenam. São por vezes seculares e legíveis, durando mais do que os edifícios. (...)
ASV - Mais difícil é ver numa zona recente esse equilíbrio entre vazio como forma e a envolvente como definição do vazio. As duas coisas são importantes.
NP - (...) Concluindo: o espaço tem forma e desenho, daí o erro de Corbusier, quanto atacou a rua. Os limites entre rua e edifício são ambíguos. Um enforma o outro. Mas um precede o outro. Tudo ao mesmo tempo é excepção. E tal como os edifícios, as ruas também têm programa, que responde a necessidades colectivas que não podem ser resolvidas nos edifícios." - in JL, nº1903

sábado, 18 de agosto de 2012

Aviso à navegação

Este post deverá ser o penúltimo durante o que perspectivo, e espero, que seja um longo período tempo. Senão mesmo, o que seria ainda melhor, este post seria definitivamente o penúltimo deste blogue. Não escrevi durante quase dois anos, sem sentir nenhum grande sentimento de culpa por isso. E, se o voltei a fazer, é pela minha tendência de o necessitar de fazer aquando duma fase horrível. Surge-me uma sensação horrível que me consome todo o corpo e da qual não me consigo libertar, o desejo de me dedicar fielmente a bebidas fortes, a vontade de partir alguma coisa e de aproveitar a onda e me partir também, e, por último, a escrita.
Por ora, as sensações parecem-me razoavelmente controladas e a necessidade de escrever está em níveis baixos. Espero que a tendência se mantenha, perspectivando que as ondas se acalmem lentamente, no que poderá ir de umas quantas semanas a alguns meses num estado de latência a que me obrigo. Sou assim, nada a fazer.
Torno isto público como uma espécie de pré-aviso, mas também para, de certa forma, tentar obrigar-me a escrever esse último post que já falei, e a tentar torná-lo um pouco melhor. Provavelmente não será nada demais, o que tem a vantagem de não se tornar muito diferente dos restantes textos. Não mais do que uma pequena cortesia da fotografia aqui publicada, a qual me deu uma pequena e momentânea inspiração. Terá um efeito semelhante ao deste aqui, o meu último texto aquando da minha anterior partida. Não deixa de ter, igualmente, um efeito de terapia.
Por último, um agradecimento a quem visitou esta páginas nestes últimos tempos. Espero que tenham gostado.


sexta-feira, 17 de agosto de 2012

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

a tua ausência
revela-se aquando de sons cuja origem desconfio
responsáveis por outros ambientes, possíveis falas
rapidamente imaginadas, uma paisagem que surge
uma voz, um qualquer estímulo que me corta o pensamento
seguido por um outro que me resgata de um instante eterno
fazendo-me notar, tal como me tende a ocorrer com a vodka
em que após tudo bebido afinal nada mais no copo
para lá de um olhar perdido nas mãos que o vidro vê vaguear 

terça-feira, 14 de agosto de 2012

Vincent Gallo, PJ Harvey & John Frusciante - Moon River


(...)
Como dirias a alguém? Não sei ao certo como o pôr e não sei se tenho mais medo que não compreendas esta minha dúvida ou, mesmo se a compreendas ou não, será que após ter dito o que queria dizer, ultrapassando assim esse primeiro ponto, me pedirias para repetir, como seu um erro meu no discurso, uma oportunidade para dizer que, afinal, estava a brincar, deixa para lá. Mas bem, é um pouco como aquela sensação que se apodera de ti e que parece apenas passível de ser derrotada ou pelo desespero ou por uma situação fortuita que a possa desbloquear. Vou tentar ser mais claro, enquanto te vejo, assim, sentada, imersa nos teus pensamentos, o que faz com que a minha certeza de que era sobre ti que queria falar se redobra. Não sei ao certo se já notaste algo, ou se haverá algo por notar, como sejam estes movimentos mais rápidos e desconexos por parte das minhas mãos, mesmo quando sentado como estou agora, dono de um olhar à procuro de um foco pelo chão, juro que qualquer coisa perdida por aqui. Bem, mas agora que penso que melhor, talvez até não seja sobre ti que queria falar. Quer dizer, não só sobre ti, ahh ...,  parte difícil agora, bem, como o dizer..., era sobre ti e o que poderia ser um nós, caso tenha eu sorte em que tal ser se materialize. Não me pareces estar a achar muita graça, e a verdade é que quanto mais te vejo a brincar com a câmara e a imaginar as tuas futuras fotos mais medo tenho de te dizer algo, de quebrar esta aparente harmonia com conversas que apenas sei ter comigo, perdido a imaginar, mas que facilmente me tendem para uma voz gaga e hesitante. Ahh?, não não, obrigado, estou bem assim, não é preciso nada, a sério. O que é mesmo o que estás a pensar fotografar?, ah!, sim, claro, parece-me óptimo. Não, falo a sério, em especial pelo contraste. Sim, pelo contraste, tanto em relação à cor como ao que pretendes representar, não te parece?
(...)
o berlinde deixou de cair como até aqui caía
sujeito de amplitudes largas e irregulares
capaz de fazer notar a rugosidade do chão na sua passada
por troca de um ritmo certo, contínuo
responsável por um atrasar dos ponteiros
e que apesar de ainda identificado com e por saltos e sons
passou a prestar especial cuidado às ondas sísmicas anteriormente causadas
movendo-se com maior parcimónia nas imediações
não deixando rasto sobre o pó, sem fazer tombar objectos
por ora, apenas embutido de reconstruir becos

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

se eu fosse sincero por um momento
não esquecendo que apenas por enquanto este se prolongar
poderei ser julgado no caso de questionado sobre estas palavras
diria que sorrio ao olhar para tudo pensando em nada
sem que com isso me chegue sequer a considerar louco
mesmo com um repetido e incentivador do riso torcer de língua

domingo, 12 de agosto de 2012

I have no more energy for this, to fight with myself for some more words, especially these...


sexta-feira, 10 de agosto de 2012

os dedos questionam o tampo da mesa
embora do tampo da mesa, tirando o dedilhar
a outra mão parte à descoberta de formas, ou talvez seduzida por elas
uma caneta que se torna intermitente
entre o estado de escrever após um simples carregar
e um estado em que recolhida tirando uso da mesma função
e observa-se, ainda, o tamanho e espessura da folha
como se o tamanho e a espessura da folha mentira
enquanto se dá o teste relativo à resistência capilar
o reconhecimento da face, os seus contornos, algo por dizer
que não é dito, nenhuma resposta qualquer indicação

surge o som da cigarra entre pensamentos perdidos
próprio da altura do ano, e da noite
com a particularidade de dar azo à imagem de eu lá fora
porventura fumando se fumasse, sentado
inquirindo buracos no chão gastando a sola
chegando grãos de terra a desfazerem-se aos meus ouvidos
atirando sem consciência de tal
o máximo de pedras que me fosse possível
até que do braço voltar a dar conta
finalmente obrigado a refugiar-me na paisagem
que decerto não distinguiria, ou teria dificuldade
caso não se trata-se de uma noite límpida
em que os contornos me fossem mais definidos
e aí me deixasse enlevar pelo jogo de cores
em oposição às repetidas em luz do dia

saído daí, o desejo foge-me para o rasgar da folha
sem que a folha culpa alguma, era capaz de jurar que sem culpa alguma
da inspiração ofegante que me invade os pulmões
trazendo na bagagem elementos e propriedades do ar
(ainda que sem poder contar com a nicotina)
detentores da capacidade de me fazer tomar consciência
de outros contornos até aí desconhecidos
artérias que se alongam, dolorosamente flexíveis
noutros recantos, não esquecer, joelhos que quebram sem estalar
ou de outro lado, a folha em si esmagada pela minha mão
num processo de reconhecimento da rugosidade na parede
e que vê ganhar novos tons vermelhos, tingida a pouco e pouco
numa velocidade constante, e que revela a principal vantagem
de a tornar mais maleável, ainda que, contudo, nada disto torne mais nítidas
as palavras com as quais me queria deparar
supondo eu que me queria deparar com algumas em concreto

não param, ainda, os passos em volta, traçando rotas
em direcção a lugar nenhum, dados por nenhuma outra razão
que não seja a da impossibilidade de me manter fixo, imóvel
circunscrito a uma coordenada cujo sistema de referência
deveria ser definido por mim, mas que me insiste em negar
a projecção devida, isto dando fé nas gotas que tocam o chão, lentamente
uma a uma e que não tardam a secar, inscrevendo-se nele, fazendo parte dele
talvez pisando eu algumas, outras levando comigo transformando-as em marcas
devido a pegadas que deixo e posteriormente recordarei ao limpar
isto caso à limpeza me dedique, supondo que durarei suficiente tempo
para a algo me dedicar

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Mário Cesariny 09/08/1923 - 26/11/2006


No dia que marca o seu nascimento, em 1923, deixo aqui um poema daquele que é, ao lado de Herberto Hélder, o meu poeta português de eleição.

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto, tão perto, tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Em todas as ruas te encontro
Em todas as ruas te perco

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Encontrei por aqui, esta notícia

Retenho a parte final, dado que se é verdade que "Os que viveram a experiência de permanecer nesta câmara durante um tempo prolongado começaram a ouvir os sons da sua respiração, o bater do coração e mesmo dos intestinos. Assim, a mente acaba por perder o controlo.", tenho a dizer que facilmente, e constantemente, oiço a minha respiração, o bater do meu coração, e, por vezes os meus intestinos e outras partes do meu corpo, sendo que nunca estive na tal "câmara anecóica (...) capaz de absorver 99,99 por cento do som", e em que, "Até agora, nenhum ser humano conseguiu ficar lá dentro mais de 45 minutos sem começar a desenvolver sintomas de falta de equilíbrio e perda de controlo." Posso imaginar que sejam intensidades diferentes, mas...

Tempo(s)

Supor que algo poderá voltar a ser como foi equivale a relegar o decorrer do tempo, conferindo-lhe ainda um tom quase mítico, como que cíclico. Fazendo fé no que aprendi, o sujeito que anuncia tal concepção coloca-se fora da história, dando-lhe um significado próprio a partir não só do que observa, mas do que traz consigo ao observar esse próprio momento, ou momentos. Trata-se de esquecer que uma enunciação desse género implica, só por si, um corte com o passado, algo que se torna distante não só pela distância temporal, como pelo que implica em relação ao presente, e futuro. Parte-se do princípio que existe uma identidade fixa, o passado, esquecendo-se não só a dificuldade do seu acesso como as múltiplas interferências que o dificultam, modificando-o. Desde logo, neste caso, o peso que esse mesmo passado, agora idealizado, apresenta face a um futuro, em que, quer acabe ou não por ter uma influencia determinante, ou sequer parta de um verdadeiro desejo de o levar em frente, a verdade é que, pura e simplesmente, o passado nunca se repetirá. A carga deixada pelo passado influenciará sempre a acção, mesmo que inconscientemente, para além de que o próprio contexto será diferente, tal como os sujeitos, bem como o tempo poderá apresentar novos ritmos. E, no entanto, o problema maior não é o passado não se poder repetir, nem o facto de ele não se anular completamente, mas, sim, o receio do sentimento de ausência em relação ao mesmo se perpetuar, dificultando, desse modo, o surgir do novo.

Completando, de forma bastante melhor, esta parte final:
"A recepção do novo não pode significar, porém, uma hospitalidade acrítica, pois ele vem morar numa terra já habitada por homens com racionalidade ética e com memória; e é pela comparação, logo suscitada pela pré-compreensão, que a densidade do “aumento de ser” que ele oferece deve começar a ser avaliada. Caso contrário, cair-se-á na reificação da novidade, como se o tempo fosse, tão-só, um infinito somatório de momentos sem passado e sem futuro entre si. E se, como bem ensinou Ernst Bloch, só quem espera o inesperado o poderá encontrar, tal atitude, em vez de passiva, tem de ser activa; deve-se agir para criar, mesmo sabendo-se, de lição colhida nos desmentidos da própria história, que a confirmação da expectativa é, tão-só, o selo da carta que, dentro, também traz o anúncio do seu fracasso. Como, algures, escreveu Paul Valéry, “prevejo, logo, engano-me”. Só neste risco – que é inerente à afirmação da vida – o futuro continuará aberto. Consequentemente, a história só será mestra da vida se, em primeiro lugar, a vida for mestra da história." (negritos meus) - Fernando Catroga, Ainda será a História Mestra da Vida?, pág.34

Por agora, o receio prende-se na incapacidade de esperar.

dei por mim com a necessidade de evitar movimentos bruscos
de não alongar demasiados os braços
ou, se com necessidade de tal
não esquecer de indo apalpar lentamente o ar
pedindo licença à matéria que encontro
de modo a algo poder agarrar, a algo me poder segurar

deveria ainda medir os meus efeitos sonoros
ter atenção ao alongamento pedido
às minhas cordas vocais, não me exigindo elas comprimentos de onda
aos quais não me sinto em condições de responder
pelo risco de trazer e expulsar consigo
o músculo principal que as faz mover
duvido se o canto pertencia ao pássaro que agora passou
tudo me aponta para a negação, são as dunas que não consigo avançar
o esqueleto que há tempos nada diz, o sol distante apesar do tamanho
a costa que a quilómetros e não oiço, ainda que vá deitando um olhos aos barcos
e dos barcos o que saí, turistas, marinheiros, mercadorias
que aqui não chegam, e por isso duvido da origem do canto

"Comecei a escrever com determinação aos trinta anos, quando corria o bairro des Abbesses, em Paris, para meter-me nalguma casa que tivesse a porta aberta, e ir dormir na retrete. Explico: em Paris, os três filhos de Deus debatiam-se com o árduo problema da dormida. Éramos um português e dois espanhóis, desaparecidos um dia de suas casas, das pátrias, e encontrados no acaso de vadiagens e bebedeiras. Tínhamos assuntos religiosos comuns. Para dormir, havia acidentais quartos de amigos, a entrada do metropolitano e, no bom tempo, as pontes do rio. Mas eu precisava de solidão e conforto (era a obra que, secretamente, se desenvolvia em mim) – e tomei como minha uma ideia que circulava pela cidade. Era possível dormir nas retretes, nas retretes privadas, nas retretes das casas das outras pessoas! A ideia abalou-me tanto que andei confuso e comovido durante dias. Fui ao ponto de escrever um poema inteiramente inspirado nela. Eu e os meus amigos, poucas semanas passadas sobre o início desta nova vida surpreendente, tínhamos já uma lista de cento e vinte e dois prédios onde devíamos tentar a entrada. Simples: estudávamos as portas de determinado bairro residencial, a ver se poderiam ser abertas de um modo qualquer, ou se as deixavam abertas. Chegava a hora do sono alheio, cada um subia até à sua retrete. Uma ascensão! Talvez Deus estivesse lá em cima à nossa espera. Claro que só escolhíamos edifícios antigos, com sentina de patamar para uso comum dos inquilinos. Acendia a luz, instalava-me fechado por dentro, e pensava ou lia, ou escrevia às vezes. Nunca a solidão foi para mim tão fértil. Se alguma pessoa vinha à retrete a meio da noite, eu puxava o autoclismo e saía como inquilino também, natural, desenvolto nos meus direitos. Defecação democrática, por ludíbrio, no seio da grande família burguesa. No dia seguinte reuníamo-nos os três, os filhos de Deus, para falar das nossas aspirações e meditações, da inspiradora solidão nocturna. 

Herberto Helder
Os Passos Em Volta
espero não desapontar
espero não considerar insuficientes estas palavras
gostaria de pensar que não se trata de culpa minha
ou, pelo menos, só minha
mas isso agora também poderá ser o menos importante

tenho a relatar um extravio
infelizmente, sem que possa dar mais especificações
não por vergonha, não por desconsideração em relação a si
mas por não saber ao certo o que foi

talvez não me entenda, admito que soe confuso
mas nunca acordou a achar que se esqueceu de algo
nunca deu uns passos para além dum local
ou mesmo após o simples fechar duma porta
e deu consigo a inquirir os bolsos, pois bem

infelizmente, e isso posso jurar, também não se trata nada disto
pelo menos, não ao certo, ou talvez seja ideia minha
o que é certo é não acreditar que assim tenha sido, posso-lhe assegurar
embora, no caso de me perguntar, pois é bem provável que o faça
aviso-lhe desde já que me refugiarei em evasivas
pois mesmo eu, como já lhe confidenciei, não sei ao certo o que contar

posto isto, aposto que você nada, bem me queria parecer
nem um auto, uma participaçãozita para amostra
(um papel para levar no bolso e que ateste a minha presença aqui
podendo-me desse modo virar a Deus, caso nele acreditasse
e olhá-lo de alto para baixo dizendo Aqui eu, dia x, assunto tal!)

certo que também responde a alguém, e de certo que ordens e regras
impossibilitando-me assim de fazer defesa dessa ficção
que dá pelo nome de propriedade privada, numa de suas várias formas
direitos sobre material, direitos sobre imaterial, outros que tais
jusnaturalismo e juspositivismo, com erros a apontar aos dois

contudo, peço-lhe que não desespere
sendo talvez precipitado da minha parte pressupor que assim reagiria
mas, apenas antes de ir embora, nada que eu possa fazer, um requerimento
ah, sem noção do que perdido nada feito, certo
a bem do gosto dos homens prácticos
pois bem, quando consciente da falta a ver se não me esqueço de passar por cá

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Les hautes solitudes - Philippe Garrel (1974)

Vi-o a primeira vez numa na Cinematea, na sala Luís de Pina, a qual, como bem sabe, não deverá dar ter mais de 50 lugares, e que se encontrava practicamente cheia nessa sessão. O filme é composto por fragmentos, pequenas imagens, situações, gestos, significados vários e sem que haja uma definição concreta e únia para cada um deles, filmando Jean Seberg (verdadeiro mito da Nouvelle Vague), Nico (à altura, namorada de Philippe Garrel, entrando em mais alguns filmes do mesmo, para além da sua participação nos Velvet Underground), Laurent Terzieff e Tina Aumont de uma tal forma que se torna possível distrinçar o que onde acaba a direcção e começa a espontaniedade e talento das actrizes/actor. Não me atrevo a considerá-lo um filme mudo, apesar de não haver diálogos nem sons, isto porque o silêncio que emana não traz só o seu toque, como é construído não só na nossa imaginação como nos próprios ouvidos,  ensurdecendo-nos, deixando-nos mais despertos para qualquer subtileza, vendo os filmes dos outros. Cada uma das pessoas presentes naquela sala construí, assim, o seu próprio filme, e assim continuaram, mesmo após as luzes acesas, em silêncio durantes mais uns minutos, até que, aos pouos, quando um se prepara para deixar naquela sala uma parte de si e colocar uma máscara para enfrentar o resto do mundo.
Ataques os há
mais constituientes de vida
do que as suas resoluções
o relógio deixou-se ultrapassar
observando eu os ponteiros, mesmo que imaginários
com um tom de castanho acentuado pelo tempo
dando ao contorno um ar distinto por razão nenhuma
dado que apenas concreto no meu delírio

tenho planos prodigiosos que ficaram por pensar
e nenhum sentimento de culpa associado, por enquanto
esquecendo-me a levantar dedos, enquanto escutam
as palavras que virão, à traição, sem outra ordem
para além da ordem que surge após um conflito comigo

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Agnes Obel - Over The Hill


estas palavras não estão mais sós

descuidei-me, abri a janela e deixei partir a brisa
as folhas suspensas nos ramos secos, agora no chão
deixadas a si, esquecidas depois do manto branco as tapar
demorando alguns minutos aos quais eu, de olhar fixo, acompanho
esfregando as mãos por distracção, ou distraído de as ter de esfregar

alguns passos em dificuldade
depois da vontade súbita de atravessar a porta, notando agora
estratos partilhados com pequenos galhos, antigos seres
sendo através da sua forma me permitido distingui-los

o vento traz consigo línguas estrangeiras
ganhando corporalidade ao longo do seu trajecto
riscos que desaparecem no ar, remexendo e levando consigo matérias
obrigando-me a espreitar por detrás dos ombros
pela sensação de algo prestes a chegar, ao menor deslize

domingo, 5 de agosto de 2012

Acredito existir um limite para o qual eu tenho consciência não só sobre o que quero escrever, como para a noção que eu possa ter sobre aquilo que escrevo - assim sendo, este texto poderá parecer, pelo menos um pouco, estranho. No entanto, acho que já não aguentava mais não te dizer nada. Deverá existir uma qualquer dimensão poética em enfrentar sozinho uma dor deste género, dimensão essa que eu, infelizmente, não devo possuir. 
A verdade, creio eu, é que se tiver de esperar que me sinta melhor para poder falar abertamente contigo, temo que, a continuar como recentemente me tenho sentido, tal acabe não só por se tornar bastante moroso mas, igualmente, bastante complicado. Existem alguns aspectos que tenho acumulado - e deixado acumular. Em especial, um tal de um silêncio com o qual a minha perícia não está a conseguir lidar, pelo menos de momento, da forma como me encontro. Assim, parece-me que o próprio facto de nada falar contigo possa estar a contribuir para que me mantenha desta forma.
Espero que acredites quando digo que não vejo este factor como culpa tua, e também não estou propriamente à espera de uma qualquer palavra ou frase tua em específico. Neste caso em concreto, parece-me que a minha imaginação, a qual ocupa um papel muito importante em mim, tem-me traído num imenso conjurar de hipóteses e situações, misturando realidade e ficção duma forma tal que acaba por retirar sentido à própria oposição entre dimensões.
Tenho-me perdido em memórias. Sendo que, ao falar da memória, é preciso não esquecer que esta "se coloca no lugar da coisa acontecida"sendo ao mesmo tempo o que procura substituir fielmente o que aconteceu como o que, nessa mesma tentativa, acaba por se encontrar em permanente reconfiguração. Daí a sua dimensão construtiva, criada por um real (tanto passado como presente) e criadora de real (não só no presente e futuro, mas também interagindo com o passado, alterando o que de facto ocorreu através da forma como observo) Em que tanto esqueço como lembro, esquecendo e lembrando tanto o que quero como o que não quero, estando a lembrança e o esquecimento em constante interacção, interacção essa sujeita a vários factores que nem sempre estão sobre o meu domínio e que me levam a várias interpretações, também estes em constante mudança. 
O tempo que passou, sensivelmente um mês, e mesmo sabendo que o seu decorrer possa ser percebido de diferentes formas, tem ajudado a construir e a consumir esse actual silêncio - tanto o teu como, e, talvez principalmente, aquele que crio e imagino. Assim, perpetuo o presente, tal como ele está ou, pelo menos, como dele agora me apercebo. A preservá-lo como se disso necessitasse e, de certa forma, me desse um estranho sentimento de contentamento no meio de uma qualquer tempestade que ajudei a criar, tornando-se na única coisa em que sinta segurança de agarrar, ainda que tratando-se de algo intangível.
Por vezes paro e, entre pensamentos perdidos, lembro-me da tua voz, de como respiras quando sorris, da forma como usas as mãos quando queres argumentar alguma coisa, de como o teu olhar acompanha as tuas expressões faciais, do teu lábio quando procuras confirmação do que dizes. Sorrio, acredito que um sorriso estúpido, pequeno, como se eu fosse transportado para outro lugar, e continuo assim. Lembro-me de como, em algumas situações, se notava um pouco das tuas orelhas por entre os teus cabelos compridos, em relação aos quais, posteriormente, costumavas indicar o lugar devido com as tuas mãos, num movimento perfeitamente simétrico dos teus braços. Mantenho-me desligado do resto do mundo, recordando uma pequena pausa que fazes quando pareces discordar de algo e, antes de dares a tua opinião, juro notar um não reticente que quase não se faz ouvir e que julgo aparecer quase por impulso, inspiras uma vez com maior convicção ao mesmo tempo que se observa os teus olhos a pedirem confirmação sobre o que dirás de seguida. (Poderia continuar, assim, simplesmente a escrever sobre expressões tuas.)
Existem outras situações que recordo, ou que tenho feito recordar, as quais despertam reacções bastantes diferentes da minha parte. Por exemplo, quando te conheci, a primeira vez que te vi, de longe, inclinado no primeiro piso do CCB, sentido o odor da calçada molhada e a serenidade que vinha do jardim em frente. Lembro-me quando tu chegaste com a tua amiga,   tendo-te visto primeiramente e só depois obtido a confirmação através das palavras de quem estava ao meu lado. Creio que as duas vinham debaixo do mesmo chapéu, e, depois, encontramo-nos nas escadas de acesso ao primeiro piso, tendo eu dito qualquer coisa à pressa sobre o concerto, tentando  esconder uma possível atrapalhação minha. 
Também recordo, muitas vezes, como a minha opinião sobre ti foi mudando, tendo existido uma altura em que, agora sinto-me à vontade para o dizer, não gostava muito de ti... Parecias-me distante, não gostar da minha presença e do que eu dizia. E, eu próprio, do que agora me lembro, parecia não gostar muito do que dizias e perguntavas, de como reagias, etc. (Apercebo-me agora de como a imagem que fui tendo, sobre a tua opinião que poderias ter sobre mim, foi tão importante.) No entanto, pelo menos pareceu-me, e sem que eu consiga explicar ao certo porquê, começaste a aturar-me e, inclusive, a ríres-te do que eu por vezes dizia, mesmo que se tratasse de simples parvoíces ou assuntos sem grande interesse, ao mesmo que tempo que passavas a gozar com algumas coisas sem que, com isso, mostrasses qualquer maldade.
Creio ter sido a partir desse momento que comecei a ver coisas onde elas não existiriam, mesmo que até as tenha preferido ignorar, isto porque, como te disse, a minha opinião sobre ti não era a melhor. Além disso, tenho de te confessar, por naquela altura, e já desde há um longo tempo, não estar com vontade de me envolver, fosse de que forma fosse, com alguém. Tinha, talvez por estupidez, a vontade de não voltar a ter o meu pensamento ocupado por ninguém, de não voltar a sentir falta de ninguém, e apenas deixar os meus dias correr, ocupando-me, se possível, com outras coisas, ou procurando dar um toque pessoal ao nada. Tudo contribuiu, ainda, para que eu percebesse que estava a tentar controlar algo que não depende apenas da minha vontade, pelo menos daquela que é supostamente racional e possível de controlar.
Depois, bem... depois comecei a ver-te de outra forma, ainda que não tenha sido uma imediata passagem do 8 ao 80. Aos poucos, passei a sentir-me muito mais à vontade contigo e a gostar de estar na tua companhia. Acho que nos passamos a entender muito bem, mesmo tendo opiniões algo diferentes. Isto poderá parecer um pouco estranho, ou pelo menos sem grande lógica, mas acredito que foi a partir daí que comecei a aperceber-me de que te via de outra forma, passando a pensar cada vez mais em ti, esperando que nos encontrasse-mos mais vezes.
Assim, e como não podia deixar de ser, surgiu a inquietação sobre como e quando te dizer, e, até, se te deveria dizer alguma coisa. Foi também aí que comecei a duvidar mais seriamente sobre o que pensava, sobre se, afinal, não seria tudo fruto da minha imaginação, ainda que mesmo que o fosse, já nada havia a fazer... Passou a ser ambíguo estar contigo, procurando ser o mais natural possível e tudo fazer para que nada notasses, até porque não tinha coragem para dizer nada, e, ao mesmo tempo, querer e gostar de estar na tua companhia. 
Acho que tudo se desequilibrou após o dia em que partiste de viagem. Se até então acho que estaria mais ou menos controlado, depois comecei a pensar cada vez mais que poderia nunca mais te ver, e, assim, passei o tempo até regressares, escrevendo e reescrevendo um texto que  depois não te cheguei a mostrar, perdido e deixando-me consumir nos mais variados pensamentos. Quando regressaste tinha para mim duas grandes opções, ou nada dizer-te e esperar que durante o Verão pudesse esquecer-te, ou, a segunda, arriscar, já que também pensava que não teria outro momento para tal. Além disso, também achava que te deveria contar, nem que fosse por uma questão de sinceridade. Toda a noite tive essa dúvida na minha cabeça, influenciada, inclusivamente, pela conversa que estávamos a ter, para além de outras situações anteriores, como já referi. Daí o meu comportamento algo estranho em alguns momentos nessa noite, daí os meus olhos vermelhos como reparam sem que eu próprio tivesse notado, sem que próprio tivesse notado que assim estava, com pequenas lágrimas esquecidas no canto do olho como tantas vezes me acontece por agora, sendo que, desta vez, com a agravante de estar ao teu lado. Finalmente, o esforço que fiz de forma a controlar-me, após saber a tua resposta...
De então para cá, ficaram dúvidas e inquietações, bem como uma luta sobre a melhor forma de reagir. Tenho pensado constantemente se eu não tinha, de facto, dado nada a entender, tal como tu disseste. (Se não tinhas notado nada, acho que ainda sou capaz de ficar mais preocupado com o meu comportamento.) Tenho pensado se a tua opinião sobre mim mudou muito. E tenho pensado um pouco de tudo isso ocupado a alimentar este blog, em especial no que diz respeito à forma como me tenho sentido. 
E, agora, mostro-te este canto de forma a ser capaz de te dizer o que de outra maneira provavelmente não seria capaz. Aquilo que me sinto pouco à vontade para falar, e que escrevendo até poderá soar melhor, ainda que não deixe de ser, ao mesmo tempo, uma fuga. Espero que não tomes as palavras aqui deixadas como se, ao mostrar-tas pedisse que me salvasses de alguma coisa, pois não estou. Eu próprio, que as escrevi, ou deixei que elas se escrevessem através de mim, não sei ao certo o porquê de as ter escrito, e, ainda mais, do porquê de tas mostrar.

P.S. Quando, cheio de receio e de forma algo atabalhoada, disse que gostava de ti, menti. O que deveria ter dito é que te amava, e, falando agora no presente, amo - verbo que, mesmo em palavra escrita, tenho dificuldade em conjugar, bem como a atribuir sentido.