Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.
Franz Kafka, "Aforismos"
terça-feira, 21 de julho de 2009
O tradutor
"O tenente Cumbie da Companhia Dagger do Exército americano e um intérprete falam com um homem em Kolack, no vale de Pesh, na província afegã de Kunar. Fotografia: Tim Wimborne" in Público.
Os soldados perguntaram por alguém e indicaram este velho. Por sorte, vivia já na casa ao lado. Por esta altura costuma estar sempre em casa, o calor. Só de manhã bem cedo, ainda dando para ver a lua, e ao final do dia é que não. Fica-se pelos campos, têm alguns terrenos para amanhar, além de ser uma maneira de ocupar o tempo. Era o homem mais velho da aldeia.
-Sim, sim, houve uma explosão na semana passada. Uma aldeia a uns quilómetros daqui. Estava num campo aqui perto e fiquei com medo, não me pareceu muito longe, só me acalmei quando cheguei e vi que estava tudo bem. Se quiserem, posso mostro-vos essa aldeia. Sei que deram cabo dumas casas, agora se morreu alguém já não sei. - disse o afegão.
-Ele diz que não viu nada, têm andado tudo calmo por aqui, não vale a pena ir a lado nenhum. Só uns rumores com os amigos, metem-se no café e não fazem outra coisa. Nada seguro. - o tradutor, agora virado para o tenente. O afegão olhava com atenção para ele enquanto este falava.
-Pergunto-lhe se reparou nalguma coisa de diferente nos últimos tempos. Diga-lhe que não minta, que isso eu sei ver. Andam sempre por aí uns taliban escondidos, parecem ratos os cabrões. - ajeitou a espingarda - Se for preciso reviso isto tudo que é um instante. - respondeu o tenente.
O tradutor virou-se para o afegão e continuou o inquérito.
-Por aqui ainda não houve nada, um desconhecido, grupos a passar, nada?
-Não, não. Felizmente, não. - parou um pouco, mas fez um gesto com a boca, talvez garganta seca - Sabe, eu vivo aqui desde que nasci, já tivemos muitas guerras, já tivemos os taliban, mas também já tive os meus filhos, já enterrei os meus pais, alguns dos meus filhos também já são pais. Agora tenho esta barba e este cabelo branco, e todos os dias dou graças a Alá por isso. Por nos ter livrado um pouco disso. Acho que é de ser uma aldeia pequena, compreende. Não saímos muito daqui, eu conheço todos os habitantes desta aldeia desde que nasceram.
-E não viu ninguém? - insistiu o tradutor.
Se alguém passa por aí, e se não formos estúpidos, safamo-nos. È raro passar alguém por aqui, mas também se aprende muita coisa com a vida. Só houve isto agora, naquela aldeia. Mas Alá é grande e vai-nos proteger. Nós rezamos todos os dias por isso, decerto que nos irá ouvir. E acho que com Essa ajuda vocês vão vencer, ganham todos com isso. - o afegão baixou os olhos e mirava a espingarda do tenente, o tradutor virou-se novamente.
-Ele diz que não. Às vezes passam por aí pessoas que não conhecem, é normal, mas não têm tido problemas. Agradece muito aos soldados americanos, diz que são muito bons. Agora sentem-se mais seguros, estão todos muito agradecidos por esta visita. - o tradutor levou a mão à cara, afagava com cuidado a barba. o velho levou as mãos às costas, decerto que lhe doíam - Meu tenente, acho que não vale a pena continuar aqui.
-Agradece-lhe também, temos de ir andando. Ouvi falar duma explosão numa aldeia aqui perto, temos de ir ver. O senhor volta agora para o quartel, pode ser perigoso. - concluiu o tenente.
E depressa se meteram nos jipes, o afegão voltou para dentro, o tradutor ficou no mesmo sítio, sem se mexer. Buzinaram do jipe que era suposto levá-lo, virou-se e foi na sua direcção. Só ia ele e o condutor, mas sentou-se atrás. Afagava a barba.
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1 comentário:
qel.19@hotmail.com adiciona no msn e eu mando-ta por lá ;) *
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