Um comboio e o comboio não para, fecho os olhos e o vento com eles, procuro-os e talvez na próxima estação. Isto ou talvez outro sítio onde um bêbado ao meu lado, dificuldades de visão, caras de outros tempos nas actuais, distâncias; um filho que não atina e outra que têm um telemóvel como apêndice; uma mota numa curva há uma semana, nova, de 82, só um pequeno problema nos travões; desgostos de amor e as ameaças da mulher, as que ele poderia ter tido, se soubesse o que sabe hoje; o chão que, vá-se lá saber, têm um desnível qualquer que o acompanha por todo o lado.
As palavras prendem-se e o cigarro não é confidente que chegue, o copo de cerveja não é assim tão fundo mas insiste em procurar fluidez. Eu fico a ouvi-lo, julgo que uma lágrima na cara e lágrima nenhuma. Admiro o álcool e os seus poderes. Dedos com outra vida, parecem uma escada que vai apalpando aos poucos enquanto fala, trémulos, histórias que só na cabeça dele. A vida, como lhe chama.
Oiço-o pedir outra insultando o empregado enquanto gentil comigo, eu sempre calado e quase sem o olhar. Os dedos que não param. Vêm o empregado e entorna-lhe a espuma nas calças, pelo sorriso não sei. Eu a julgar que ele sobe e sobe nada, o cimento é muito pesado e as pernas, segundo me diz, são daquelas coisas que se perdem com o tempo. Levanta o punho, o outro vira costas. "O corno vai com medo", canta. Eu calado desde o início, acho que nunca havíamos falado a sério antes.
-Puto, a vida é fodida.
Estávamos sentados num muro, eu a fazer tempo. Risos á volta e algo de triste naquele rosto, a pedir copos e cigarros incontáveis. Vejo-o apontar à esplanada, estava um rapaz e uma rapariga a conversarem, riam os dois; um grupo a construir uma pirâmide de copos de plásticos, pingos pela mesa.
-Estás a ver aquela?
Roda o copo devagar, sopra para sair a espuma, entorna um bocado. Perde-se no copo e o copo enorme junto ao nariz. Julgo que se interessa pela constituição química do que bebe e um golo apenas, simples.
-Não falas muito pois não, puto? Quanta merda eu fiz na tua idade.
Dá outra volta no copo.
-Não faz mal, puto, não faz mal. Mas eu na tua idade andava por aí feito um maluco, não havia uma que me escapasse. Temos de ser duros, puto. Achas que ela gosta daquele estúpido? Tu até tens bom aspecto. Aquele gajo só sabe arrotar e levar nos cornos. Olha que não há melhor altura que esta.
O cigarro a fugir dos dedos, o isqueiro que começa a falhar e chama vêm, não vêm. Culpa o cigarro e o cigarro no chão. Acaba por pedir ajuda.
-Obrigado puto. Diz lá agora, só estamos aqui os dois. O empregado que se foda e os que estão lá dentro é só cabrões, não há um que falhe, não valem nada. Só me arrependo de não lhes ter batido mais quando era novo. O teu pai é outro, mas tu não. Ela é boa não é? Fodaxe, com essa idade o que eu já tinha feito. Assim não dá, puto, assim não dá.
Dá-me uma palmada nas costas. Eu a julgar que o copo frágil e frágil nada, cheio de força nas mãos dele, nem espalmado nem nada. A espuma já pelo meio.
-Aí se eu tivesse a tua idade, com as raparigas de agora nem sei. Tu já me viste aquela mini-saia? Parece mais um cinto. È só para provocar ou o que é que tu julgas?
De novo o copo a rodar. Passa uma brisa e fala do frio, que deveria ter trazido um casaco ou assim. Saltam dois homens do grupo da pirâmide, vão ao bar, ao passar por nós riem-se dele.
-È um mundo da treta e só vale uma coisa, tu. È fodido, mas é assim.
Saí um homem do café e oiço chamar-lhe cabrão, baixinho, só para eu ouvir. Diz-me que uma vez o deixou no hospital.
-Não parava de olhar para a minha miúda, o cabrão. È verdade que ela estava com outro, mas mesmo assim.
Acaba o copo, fica uns instantes com o cigarro, acaba por engasgar-se. Julgo que saí um suspiro e daí talvez não. Mete as mãos nos joelhos.
-Tens de tirar essas ideias da cabeça. Assim não vais a lado nenhum. Não lhes perdoes.
Levanta-se e diz que é tarde, a sua vida não é isto. Digo-lhe adeus, ele volta-se para trás e ri-se; pensava que eu era mudo. Deixo de o ver após o segundo candeeiro. Àrvores nenhumas, prédios em fila, todos alinhadinhos, carros à porta, de longe mal os distingo, nem um cão se ouve. Olho para a rapariga, ela vira a cara para mim e sorri, o outro enrola os dedos e os olhos perdidos não sei onde, vejo-lhe a boca aberta. Levanto-me e vou embora. Deverá deixar de ver-me depois do segundo candeeiro, talvez ainda a rir, o outro deverá fazer não sei o quê com as mãos. Vou para casa e tento dormir, dormir.
(Tenho a sensação que não vou ser muito bem percebido. E também sei que a culpa é principalmente minha. Mas tal como odeio um texto onde me dão tudo como se fosse incapaz de pensar ou pretendessem que eu tomasse uma ideia como a única válida de tão óbvia que é, detestava fazer o mesmo. Pois, acima de tudo, gosto de tratar quem me lê com respeito. Já que fazem esse esforço.
Gosto muito duma frase que Lobo Antunes repete constantemente: "Quem escreve o livro é o leitor". O outro só têm de preparar as coisas e deixar lá a sombra.
O pior de tudo isto é quando já se está viciado como eu. Se não tiver uma história por fazer já não consigo viver. Nem tanto pelo desespero de achar que não sou capaz, mas porque deixo de ter um objectivo, um rumo, um escape. Escrevo para combater a depressão. Quando tenho um texto dentro de mim, as frases aparecem-me naturalmente, como um impulso. Estou sempre a pensar nisso, mesmo quando não estou a escrever, a comparar com o que vejo. "E se eu tirar aquilo...; isto ficava bem ali; não, assim não dá; tenho de cortar." E depois deste trabalho todo, nada. Se soubessem com o que comecei este texto... ouvi a irmã da minha avó falar ao calhas que tinha ido comprar uma pilha para o relógio; daí cheguei a isto.)
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