Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


quinta-feira, 13 de agosto de 2009

1X2



"Um homem percorre a pé a frente marítima de Havana, o chamado Malecón. Foto: Desmond Boylan/Reuters" in Público

1
Nuvens e mar, gaivotas e barcos, o muro que de repente inexistente, os pés não presos e a cara no lado de lá, mas hoje nem Sol nem nada.
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Se pudesse, gaivotas e barcos para trás, seria edifícios a aparecer como cogumelos, de tão altos até as nuvens mais chegadas ao chão, nas estradas luzes que se vão engolindo e formam linhas, principalmente de noite, um sítio onde ir, um saco de compras no banco do pendura, se me fizessem parar um insulto, alguém na passadeira, alguém nos outros carros, um nabo? Dou comigo prestes a atirar pedras ao mar, um buraco e eu pelo meio, as pernas a responder, soltas e pelo ar. A pedra com força e ondas de cada lado, julgo que enormes vistas do meio. No cima de cada onda, barcos com pescadores, todos em linha sem falar, um olhar pequeno, as mãos apoiadas na madeira e apenas uma pequena parte dos dedos visível, restos de sal a escorrer. As ondas à mercê, o vento como que mais rápido, as pernas a reconquistar equilíbrio e o muro menos fiável por momentos, vontade dum salto para a areia, vontade dum murro no muro, vontade de me deitar em cima dele, vontade de... América. As pernas melhores e de novo o muro para trás. As nuvens mais perto, luzes a chegar e dos barcos nada - que ideia a minha, dos barcos claro que nada, onde já se viu, barcos de madeira com luzes -, sigo mais um pouco e as ondas maiores, numa loja de telemóveis o anúncio "Ainda não tem? Com este até os seus contactos aumentam.", ruas desertas embora já não necessárias, edifícios voadores, ondas como que a querer engolir-me, os barcos em cima prestes a tombar, medo que o cilindro feche, o saco das compras com o que bem me apetecer, os pescadores bem é longe tal como as suas música a Che Guevara, de noite luzes atrás das outras, visto das nuvens formam linhas bem ordenadas e parecem uma só, o cilindro feche-se e os barcos para o lado, em cada esquina mil portas mas qual a minha, o mar voraz e dos barcos nem vê-los.
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Um barco ao fundo, não me parece de madeira, nem uma cara avisto. Brrr, que vento agora, as pernas abanaram, sempre tão fracas as minhas pedras - que estranho, normalmente aqui parecem-me melhores. Agacho-me atrás do muro.

*
2
Até onde vai Sol? Felizmente também gosto de nuvens, e hoje estão lindas. Eu que já deveria estar ali, junto ao mar, na areia, à espera dos barcos, não muito longe por agora. Sei que chego a tempo, basta-me correr, mas não sei se esta espera os impacienta. Adoro este muro, lembro-me dela, a memória faz-me ficar mais um pouquinho, como se estivesse preso, não gosto desta sensação, apenas de pensar nela. Horas e horas aqui, juntos, eu sem precisar de falar ouvi-a, gosto de a ouvir embora não tome muita atenção, que vitalidade ela lança, meu Deus. Talvez meia-hora até que cheguem, as ondas hoje estão de feição, olhar o infinito sem ter o que pensar apraza-me. Eu quase sem falar, não vejo bem o porquê, basta-me observá-la, mesmo quando se zanga, as palavras mais longínquas, mãos e lábios tremidos. O capitão diz que eu tenho jeito, basta aprender uma coisa ou outra, o resto é cabeça. Como a queria aqui agora, poderia ser como nas vezes em que se vem despedir, as palavras noutra nacionalidade, com a cara escondida. O capitão fala em coordenadas, pesos, medidas, eu bem escuto mas para mim peixe é peixe e o resto são tretas. O capitão gosta ainda da minha tatuagem de Che Guevara, diz que era um homem de muito coração, homem que gostava do povo. Não percebo para quê tanta coisa às vezes, chego mesmo a enervar-me com tanta pergunta, olhares trocados, palavras que eram para sair e não saem. Vou para a areia, já é tempo e não os quero enervar, tenho de os ajudar a levar o barco pela areia. O capitão diz que mal eu atine começo a mandar noutro barco, que seca isso de estar atento. Sento-me na areia à espera, tão macia, gosto de agarrar nela e depois abrir os dedos devagar, sentir a passar-me pelos dedos enquanto olho o mar.

" -Ficas tão engraçada assim, quando queres parecer zangada mas não consegues.
-Porque é que nunca me dizes o que estás a pensar?"

Eu aí não cheguei a responder.

3 comentários:

Rita Silva Avelar disse...

muito obrigada pelas tuas palavras. és dos poucos que me acompanha pelo principio, por isso é normal que já me conheças. mas a verdade é que as palavras me amaldiçoam, ou sou eu que as amaldiçoo, nem sei. e não sei, realmente, se é o fim. talvez seja mais uma pausa, mas o que é certo é que ontem olhei pela janela e a lua não estava bonita. olhei em volta e nada estava no sitio certo. olhei para dentro e estava um caos. senti-me como uma folha de papel cheia de riscos, sem sentido. talvez um dia consiga achar o meu. o que me custa, é que escolhi para a minha vida escrever. em qualquer altura da minha vida sei que vou escrever. e sobre o que quer que seja, vou sempre por um pouco de mim em cada palavra. e mais tarde, vão fazer-me mal. assim como uma droga que nos corre nas veias...simultâneamente bom e mau.

boa sorte para ti. continuo a acompanhar-te.

beijinhos*

Joana M. disse...

Também gostava de saber.

qel disse...

só agora é que percebi o quão bom é ler-te. Havana.. guardo boas recordações de lá (: Estou de volta :) um beijinho *