Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


domingo, 23 de agosto de 2009

Bubles




Olho em frente e alguém a apitar, parece-me. Não, em frente não dado que via rápida, acelerar e pronto, um dois três bancos dentro de bocados de ferro, um olhar no vidro, um olhar para detrás do volante, velocidades conquistadas para mais tarde gabar, no vidro um aselha, só pode dado que tão lento, nem um apito merecem. Isso, certo que só no centro da cidade, artérias de alcatrão, por vezes buracos e tampas onde se largam pneus, chatear-se para quê dado que mais por toda a cidade. Riscos brancos que não se respeitam, compreende-se pela intermitência, na calçada tudo igual, quadrados à medida da palma da mão, basta escolher e atirar, ali ora branco ora alcatrão, não se percebe e atrás da fila de carros sempre é melhor, num momento sobe a cara e do cimo da fila de carros cabelo e dois olhos que aparecem, o cabelo abana um pouco pelo movimento e os olhos surpresos, um pequeno sorriso visto que um carro perto, os quadrados para levantar mas não levanta, segue e visto do carro cabelo e olhos sem aviso, gigantes, surpresa já que os riscos brancos intercalados no alcatrão suposto serem bem mais a frente, os travões que falham, - nestes momentos nada da fila nem da calçada, dos riscos nem se fala -, um ponto em frente de corpo inteiro, afinal não falham, daqui, julgo, um pequeno toque apenas.
Alguém - não conheço - sai do carro, procura explicações mas nada, sorrisos apenas e como nem uma fala a suspeita de problemas no motor, o cabelo e os olhos já não cabelo e olhos - não me perguntem o quê -, postes à volta, fixos e frios que só eles, carros atrás, uma outra fila cheia de buzinas, alguém com a casa à espera, prédios onde janelas corridas até ao chão, se uma aberta aposto que contente, um sorriso como resposta e novamente só cabelo e olhos.
Frio na rua e de volta ao carro a chave perra, uma, duas, três vezes até conseguir, o cabelo e os olhos para trás, por momentos o sorriso no retrovisor até que apenas a fila de carros onde decerto quadrados aos pontapés, o rádio onde vozes numa língua que não entendo - julgo não entender visto a dificuldade de audição a esta altura. De noite a estrada órfã, a pedir um pé pesado, janela aberta e o cabelo a ganhar vida, muitas vezes a mão esquerda a subir para ele sossegado. Uma caixa branca com um nome, ao lado do nome 1500m e uma seta, uma luz a piscar para a direita, 60 o máximo, a estrada mais órfã ainda, uma rotunda, a primeira saída sentido proibido, segue-se e a próxima o caminho de volta, outro sentido proibido, um desvio com um nome desconhecido, dá-se outra volta e a escolha pelo nome desconhecido. Uma pequena subida, nenhuma vegetação, pedras e pedras na borda. O carro pára, distante a cada passo e do carro já nem uma memória apesar de tão perto. Um pequeno banco de pedra como refúgio, irregular e frio onde a estrada já não órfã à sua frente, luzes e luzes sem ordem, estrelas em cima e o barulho dos grilos, uma brisa suave. Julga ouvir alguém apitar.

P.S: Imagem retirada do blog D`um detalhe, a quem dedico o post.

7 comentários:

Rita Silva Avelar disse...

por momentos senti-me ao volante :p

sim, é verdade. como podemos resistir aquilo que mais gostamos de fazer?

Rita Silva Avelar disse...

ah, claro, adorei a fotografia :)

Joana M. disse...

Vi cada imagem que aqui projectaste, Nuno.
E não sou exagerada, o outro fascinou-me mesmo.


A Mafalda Macedo é uma sortuda, *

'stracci disse...

Esta é - pode dizer.se - a minha faceta original. Não sei há quanto tempo acompanhas o meu blogue, mas podes encontrar vários textos mais antigos dentro deste registo. :)

Em relação aqui ao teu, estou a gostar muito desta sequência de textos. São extremamente pictóricos, por um lado, e extremamente ricos em termos de mensagem, por outro. Gosto de tentar decifrá.los!

A Coração disse...

Gosto da simplicidade e da perfeição com que descreves coisas tão simples, banalidades tão doces.

'stracci disse...

Nem escreveste de mais, nem disseste nada errado. Aliás, talvez sejas das poucas pessoas que conseguiram captar algo mais do que o que estava escrito nos textos.
Como uma vez te disse, escrevo mesmo para me libertar. Sempre fui a pessoa que ouvia os problemas dos outros, mas eles nunca ouviram os meus. Acho que foi muito por isso que comecei a escrever.
Bem, foi muito bom ler as tuas palavras! Obrigada pelo incentivo! :)

Beijinho *

MafaldaMacedo disse...

Desculpa a demora a vir aqui espreitar-te, mas ando doente e levantar-me da cama é suicidio para a minha cabeça.
Estou horrorizada (positivamente) pelas escolhas para pormenores. A originalidade nata e a complexibilidade da leve metafora do texto. Agradeço de coração :)

(ah já agora a dona desse blog tem muito bom gosto fotografico. ahah)