É o tentar olhar para este momento como se duma flor estranha se tratasse, encontrada dum dia para o outro no canteiro, e cujas raízes, que me trm feito suplicar água e sais minerais como até então nenhuma outra tinha feito. Pensar que essas raízes que se alastram no solo apareceram aqui talvez pelo vento, ou obra dum pássaro, depois de engasgar e deixar a semente cair, talvez mesmo uma abelha. E, se deixar o canteiro a descoberto, quem sabe, talvez outra possa aparecer.
Mas depois, quando salto da minha caixa e vou ao jardim apanhar ar, lá está olho a flor, como que maior que todo o resto, a única vista em redor. Examino-a de diversos ângulos, as minhas pernas para cá e para lá, jogos de impaciência na minha cabeça, vou buscar uma cadeira perdida não sei onde e assim que me sento volto a levantar-me, levo o indicador aos lábios, intermitente, a mesma rota sempre para lá e para cá, num momento acabo por tropeçar na cadeira e já que a tenho de levantar, sento-me de seguida, olho novamente e desisto, tenho os olhos tapados pelas mãos e pelo cabelo, ora fechados ora fixos no chão, levanto-me outra vez a olhar para a flor, ela que só me pede contemplação, bons cuidados, dobro os joelhos e deixo a mão no queixo, o relógio para, se calho em suspirar há um furo que é descoberto nos meus olhos, os dedos funcionam como tampa e o furo não solta mais o repuxo, volto a entregar a mão à face, os olhos à flor, piscando muitas vezes e trocando posições, a cara move-se constantemente em tiques que não conhecia. Caso um comboio atrás de mim, nem um cabelo movia.
È uma flor enorme e extremamente bela que cresceu sozinha, mas agora, sem formas de crescer, acabará por murchar. Ainda que tal aconteça, nunca a arrancarei daqui, deixarei o seu caule e pétalas ao encontro da natureza, e só ela - talvez ventos, dilúvios, incêndios... - a poderá arrancar. Talvez tente um perfume com as últimas pétalas verdes que poder apanhar, as últimas que ainda se encontrarem verdes. As raízes ficarão pelo solo na rede que construíram, um espaço que tentarei guardar.
A profissão de jardineiro orgulhoso não é capaz de me cativar, mas canteiros sem cor não funcionam. Não sei se pelo vento, não sei pelo bico dum pássaro ou até junto aos poléns dum abelhas, talvez plantação premeditada, com primeiro a escolha da flor, o local, as ferramentas a utilizar, mas espero ter sempre a lucidez necessária para nesse canteiro onde, ainda que murcha, esse ser de memórias passadas ter apenas como companheiras seres dignas de tal.
O canteiro anda com ervas daninhas a saltar o muro e folhas secas a cair duma árvore cinzenta enorme, pena só quando já não o reconheço ou me avisam é que o começo a limpar. Assim que se tira o peso, volta ao normal. Assim que a primeira folha sai, os olhos baixam-se. Consciência de culpa, um barco a afundar-se por o marinheiro ter feito um buraco ao assustar-se com as ondas. Mas depois sabe tão bem ouvir o vento de mansinho, uma voz a ocupar-se da orelha a ordenar até o local de despejo dos detritos, a brisa com cuidados, um assobio no lóbulo.
Por medo de perda de identidade, nunca desenvolvi em excesso o pensamento. Foram os meus impulsos em mó de baixo que me traíram novamente, um novo buraco negro a pedir-te mão. Desculpa.
1 comentário:
tens a minha mão estendida
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