Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

I
Vejo um muro e regresso. Regresso sempre.
Do outro lado não me espera o beco duma noite escura
cor ambiente deste recanto em que me soterro
onde carros embora a metros circulam nos meus ouvidos
e deles apenas um pequeno vislumbre que não posso garantir
                                       [(não mais que uma luz arrastada)
entre duas paredes iguais.
Mas não subo. Simplesmente não subo.


E o alcatrão aumenta em frente dos meus pés
e a chuva caí sem que com ela me incomode
e a cabeça baixo assim que ao muro vire costas.

E todas as minhas funções são agora vistas por outros olhos.
Reparo que a mão me foge do meu corpo - desligada
assim a obrigada pelo movimento. 
O peito ainda que a contrair-se de frente ao obstáculo
(tentando em vão manter-se)
e a respiração ouve-se, pedindo a todo o meu corpo que respire e expire de seguida
tal como é normal hábito, como é regra. Sem sucesso.
Simplesmente acompanha a cabeça e assim vai-se descolando do corpo, estendendo-se
á frente do braço, perdida num ar que encontra diferente
e agarra-o. O ar.


Os cheiros que vinham - trespassando pelo cimento
são substituidos pelo da chuva
onde quer que a chuva possa pousar, e a agitação ganha forma.

Para trás o momento onde os relógios não entravam
e os ponteiros rodavam sem qualquer tipo de suporte, a outras velocidades.
O momento onde os calcanhares se elevam sem que os olhos reparem
e tudo parece possível.

II
Tão fácil seria se aos meus ouvidos uma voz ditasse o que não vejo, uma e outra vez.
Digo-o não por se tornar quase impossível perder, mas ao perder ser eu o único.
(Para sempre calando o meu intento.)
E dado o salto a certeza de não me ver em propriedade privada
[sujeito a olhar silencioso.
Deste modo apenas tomando o risco uma resposta será dada.
A realidade em busca do sonho.
Apenas no sonho me refugio. Um paìs em construção.

Vencido o receio que encontro
(em cada situação uma imagem, em cada detalhe um código)
procurar o silêncio não só no olhar - que nele tanto pode indicar -
(Uma voz de fundo, talvez, porque não falas?)
mas num lugar mais fundo. Um terreno possível de preencher.

III
Caso contrário, perdido em mim
o perigo de refugiar em pensamento
a existência não encontrada em essência.

E o alcatrão alonga-se cada vez mais
e nem um temporal notarei.

1 comentário:

pecado original disse...

Evitar é um velho inimigo do ser humano quando ele encontra muros pelo caminho. Se o outro com pedras faz castelos tu com muros deves fazer coisas bem melhores :)

Nunca te esqueças disso!