Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


quinta-feira, 4 de junho de 2009

"Isto que escrevo é o quê?"

"é no meio desta gente que te sentes bem, deste canto que ninguém a não ser nós sabe onde fica, é para eles, que te não lêem, que escreves." - António Lobo Antunes in Visão
Como eu te compreendo, António Lobo Antunes. Não sou nada ao pé deles. Ainda ontem eu com o meu pai, ao lado um amigo dele que por acaso é pai dum grande amigo meu, ele sempre a trabalhar
-esta semana tenho-me acordado todos os dias às 5, só hoje é que me descudei um pouco e fui a ver já eram 6:20
dizendo isto como se nada fosse, com a dignidade que sempre lhe reconheci em todos estes anos da minha existência
(não me acho capaz de tanta dignidade, ao pé deste tipo de gente não sou nada)
vejo-o dum lado para o outro, saí do trabalho e aí vai ele, às vezes com o filho dele, amigo meu, já guiava tudo com 5 ou 6 anos
(ia com as mãos ao volante, era pequeno para os pedais; no outro dia a falar comigo
-já viste esta merda, estamos fodidos daqui a uns anos. só há tótos por aí, não sabem nada. só roubar, só beber, Hi5 e telemóveis; fumar ganzas, eu ás vezes também fumo mas uma ou outra, como toda a gente
a verdade que disses-te pá, quando apanhamos nós outra bebedeira?)
eu via-o e ria-me, ele ria-se também, eu com a minha avó e o meu irmão, alguma coisa nas mãos
(um regador talvez?)
depois duma tarde nalguma horta, o meu pai a falar para o pai do meu amigo que por acaso é amigo dele
-eram 6:30 e já eu e o meu irmão andavamos a regar, é isto que eles não compreendem
(será que o meu amigo, apenas um ano mais novo que eu, mesmo mês e tudo, será que ele ainda 6 anos agora?)
referindo-se a mim, ao meu amigo que por acaso é filho do amigo dele, que sou eu ao lado desta gente, "Isto que escrevo é o quê?"*, para eles eu aqui escrever não é nada pois mesmo sem lerem isto
(e de nada lhes serviria)
ou mesmo outra coisa qulquer, sabem mais do que eu a léguas, viveram, passaram por elas, metem esses intelectuais todos a um canto
-eles não sabem dar o valor
de novo a mim e ao meu amigo que por acaso ali não estava, eu a escutar e à espera para ajudar o meu pai
-não conseguem entender
e talvez não, a minha avó que andou uns 2 meses na escola e mesmo assim sabe ler, faz tudo ainda
(-a professora disse que era uma pena eu não poder aprender, tinha cabeça)
ela com 79 anos
(quase 80 para o caso de alguéma a ler isto mas não souber contar, eu não sei)
de certeza não a ler isto pois sempre dum lado para o outro, talvez um regador nas mãos queixando-se entre risos às amigas
-è a vida
e tu Nuno, "Isto que escrevo é o quê?"*, de certeza que não lhe tira o regador das mãos
(se eu lhe tirar ofende-se; se insistir que sou eu a levar um saco de 10 quilos cheio de erva, diz que vai melhor assim para equilibrar as costas; mas eu sou chato e insisto, ela ri
-ai...o que é a velhice. já não valemos nada)
"Isto que escrevo é o quê?"*, eles não lêem mas não faz mal, escreve rapaz, manda os intelectuais e os senhores das ideias para o diabo que os leve
(pequeno aparte: a primeira vez que ouvi falar dos Miseráveis de Victor Hugo foi numa obra, o meu pai a falar com um pedreiro, os dois
-Les Miserables
com sonoridade perfeita, enganavam qualquer francês)
por favor, arranjam-me aí um regador, um saco ou assim, depois uma caneta ou um lápis, só depois...
(antes ficava mal, era como acordar às 5)
para que quero eu que me leiam?
(será que não chego aos pedais?)
Deu-me uma vontade de ser pedreiro esta férias.
(se me perguntasse, poderia explicar ao meu amigo – ele trabalhou o ano passado enquanto eu só raramente, tenho mesmo de falar com ele - que assim o meu pai deixaria de me olhar como se fosse um campeão e de certeza nem abriria o bico, eu deixava de baixar o meu olhar; um homem têm a sua dignidade)


*"Isto que escrevo é o quê?"- Lobo Antunes

2 comentários:

Cadinho RoCo disse...

Tudo que fazemos tem, trz e emana valor.
Cadinho RoCo

pecado original disse...

Aiiii... enganas a chuva!