Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Encontro III

Houve um silêncio. Ela seguiu para junto do carro, onde se encostou ao capô, de braços cruzados. O cabelo caí-lhe até aos ombros, tornando impossível ver-lhe a face. O cabelo voava um pouco ao sabor da brisa, enquanto as rastas se mantinham quase inalteráveis. "Deve fazer-lhe alguma impressão, as rastas a raspar, ou talvez já se tenha habituado.", pensei. Ela levantou a cara e olhou para mim. Depois, com a mão passou o resto do cabelo para trás. Caminhei até ao carro ao lado, onde me sentei, de frente para ela.
-Hey! Esse carro nem é meu.
-Não faz mal. Eu também não o quero comprar nem nada.
-E achas que podias comprar esse carro?
-Não sei. Mas mesmo se pudesse, não comprava. Há tantos modelos iguais a este, não gostava de passar a cada esquina e ver um como o meu. Dava-me a sensação de estar sempre a ser roubado.
-És um daqueles ricos com um carro que ninguém pode comprar enfiado na garagem?
-Não, nada disso. Nem sequer tenho carro, e a minha fortuna gasta-se na renda do apartamento. Apenas prefiro carros menos comuns.
-Então... eras capaz de apostar que não o compravas?
-Não estou muito de apostar.
-Isso não é resposta.
-Também não estou muito de respostas.
-Basta um sim ou não. Até tu disseste que não gostavas do carro, qual é a dificuldade?
-Ter de fazer isto. Como se de uma resposta minha dependesse muita coisa.
-E nem sequer o teu nome perguntei ainda. Mas que raio estás a pensar?
-Alexandre.
Eu tinha os olhos nos meus sapatos, o pé direito não parava de escavar, escondi as mãos nos bolsos. Enquanto isso, ouvia-a suspirar.
-Não estiveste muito mal agora. - disse ela.
Eu levantei a cara.
-Não estive mal? Que quer isso dizer?
Neste momento, enquanto a olhava à espera duma resposta, ouvi duas pessoas a chegarem. Uma delas chegou ao pé de mim e disse-me para sair de cima do carro. Eu levantei a mão esquerda e estendi-lhe a palma, sempre a olhar para ela, que tinha os olhos nessa pessoa. Pedi-lhe um minuto, sempre a olhar para ela, à minha frente, e por esse pedido levei um murro na cara e caí no chão.
-È o carro da minha namorada, otário. - disse, depois de quase passar com os pés em cima de mim, e já com a porta entre nós os dois. Entrou e, a namorada, que já estava igualmente dentro do carro, fez marcha atrás e deixou um espaço vazio. Aceleraram depressa, e ainda consegui ouvi-la a falhar a segunda mudança.
Ela saltou do carro e foi ter comigo. As costas doíam-me mas dum momento para o outro só me apercebia do seu cabelo, que ela tentava compor com a mão. Quando se baixou, vi de perto os seus olhos castanhos, completamente brancos ao redor. Notava-se aflição no seu rosto, mas eu só notava os seus olhos. Tocou no meu ombro e perguntou se estava tudo bem. Disse que detesteva aqueles dois.
-Acho que devíamos ir a tua casa depressa. Dói-me aqui qualquer coisa e estou a precisar dos primeiros socorros.
-Boa tentativa, mas pareces-me muito bem.
-Isto são lesões internas. È preciso ter atenção a estas coisas.
Ela levantou-se. Eu, primeiro, sentei-me, depois apoie-me no chão e subi igualmente.
-Tenho de ir. - disse-me.
-Espera. Ainda não me respondeste.
-Não és capaz de avinhar?
-Estou à espera dumas luzes.
-Primeiros socorros?
-Entre outras coisas.
-Não me julgava tão complicada.
-Bem... tens os teus momentos.
Ela olhou para mim, como que a sondar-me. Deixou escapar um pequeno sorriso e eu sorri também.
-Estou para ir a um bar. - continuou - Estava a pensar se também querias vir...
-A sério? Claro que vou.
Voltou-se para a porta do carro e abriu-a. Dei a volta ao carro e também entrei.
-Já te disse que gosto do teu carro? - perguntei.
-Ainda não, mas estás sempre à vontade para dizer.

3 comentários:

MafaldaMacedo disse...

um romantico disturcido pelos dias de hoje, o algum dito em sêco ao mesmo tempo que se puxa o fiozinho da curiosidade e vontade de descoberta, pelo menos foi assim que interpretei as muitas falas curtas. só pelo pormenor do pretexto forçado para lhe chegar ao ninho, já me conquistou a alma. Volto a repetir, quero mais Nuno.

U disse...

Parabéns Nuno, continuas a escrever brutalmente bem. As descrições continuam no sítio. Já li a primeira, a segunda, esta e também quero mais continuação.
Sei que não comento a algum tempo mas tenho lido os teus textos. A indecisão lá continua, vejo que fizeste escolhas. Espero que tenhas conseguido o que querias.
De qualquer maneira, vou voltar cá, já é tempo disso.

Peço desculpa pela ausência. *

Marisa Fernandes disse...

Sim, já estive. Estou na fase académica seguinte! *