Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


domingo, 6 de setembro de 2009

Estrangeiro

Estava ainda no corredor que dava acesso à sala, quando uma rapariga, que vinha do outro lado, levantou a cara e chegou-se junto a ele, beijando-o de surpresa. Não a conhecia mas o primeiro impulso fê-lo aproveitar e respondeu, aproveitou mais um bocado e deixou a mão direita cair-lhe pelas costas abaixo. Quando pararam e ela já sorria, olhou-a nos olhos e algo lhe causou impressão, algo de insaciável. Pensou que ela poderia ter acabado com alguém e arrependeu-se de ter respondido.
-È apoio? Se for preciso está uma cadeira ali atrás. - inclinou o corpo para trás e apontou sem tirar os olhos dela. Ela deu um passo atrás e olhava-o com vontade de vomitar, os olhos agora parados e os braços abertos à espera duma resposta.
-Estúpido. - e virou-se para a ver sair. Depois, levou a mão ao cabelo e percorria a sua cabeça, abanou-a ligeiramente e seguiu em frente, até à pista, onde mal entrou uma luz verde passou sobre ele e o obrigou a fechar os olhos.
Abriu um túnel no meio das pessoas que dançavam e encontrou um colega de turma. Este sorriu para ele e chegou a boca mais perto do ouvido dele.
-Queres ir beber um shot com o pessoal? - perguntou o colega.
-Já sabes que eu não bebo água.
-Deixa-te de tretas. Anda lá, tamos a fazer competição.
-Eu não bebo para fazer competição.
-Então bebes para quê?
-Para esquecer competições.
-Olha, vai-te foder. Se não queres não bebas que ninguém te obriga. Sempre com manias tu.
O amigo virou costas e ele fez o mesmo. Até à saída odiou a música que se ouviu e perguntou-se porque ainda continuava a vir a sítios como este. Mal saí, levou as mãos aos bolsos e encolheu-se o máximo por causa do frio. Virou uma rua à direita e viu um amigo dele que costumava por ali estar de noite, sentado nas escadas dum prédio ainda em construção. Aproximou-se, assim que o viu o amigo sorriu-lhe, ele fez o mesmo. Sentou-se igualmente nas escadas e, um pouco melhor abrigado, tirou as mãos dos bolsos.
-Frio, não é? Uma grande seca, só estraga o negócio. - disse o amigo. - Estava em casa a combinar as cenas com eles e calhou-me a mim. Mas já está quase tudo tratado, vai ser fácil.
-O que é que vão gamar?
-Um velho tem um mini-mercado ali adiante. O Paulo já trabalhou lá e disse que nem câmaras têm. E o gajo também não lhe pagou o ordenado.
-È o que deve com juros.
-Ora nem mais.
O amigo tirou a mochila das costas e apareceram duas ganzas já feitas, uma das quais levou com a mão à frente da cara dele.
-Queres?
-Não, deixa estar.
-Menino. Ainda estou para ver a primeira que fumas sozinho. - olhou para ele de novo, agora mais atentamente - Que se passa? Tás esquisito, pá.
-Não é nada.
-Se não é nada, é porque é alguma coisa, ou não? E tu é que és o homem das letras. Já agora, aquele russo que me emprestas-te, não me lembro agora o nome, foda-se, muita fixe. Era meio doido, não era? Mas vá, diz lá o que vai dentro dessa cabeça de vento.
-Dostoiveski.
-Ãhh?
-O autor que te emprestei.
-Pois, mas isso agora não interessa. Vá, diz lá o que te chateia.
-È uma rapariga.
-Ohhhh… Eu logo vi que havia aí saias. Eh pá, tens de deixar de pensar tanto, já te disse que elas não gostam de quem pense muito, é como se tivessem de ser sempre elas a mandar. O melhor é deixá-las falar e nunca, mas nunca, tentes percebê-las, é impossível.
-Deixas-me falar ou não? È incrível a quantidade de treta que te saí pela boca. Não te sentes mal com isso, tantas filosofias?
-Pronto, pronto. Já vi que estás de mau humor, fala à vontade.
-Estava a entrar na discoteca e veio uma rapariga na minha direcção, nem tinha dado conta nem nada, não a conhecia, acho que nunca a tinha visto na vida. - E contou-lhe o resto da história.
-Era boa?
-Não me lembro bem... mas sim, acho que era muito gira.
-E tu fizeste-a ir embora!? Estou lixado contigo.
-Não consigo deixar de pensar em qual seria o problema dela. E acho que agora ainda a lixei mais.
-O problema dela? O que gostava de saber é qual é o teu. Então uma gaja, e ao que parece boa, mete-se contigo e tu dás-lhe para trás. E se ela fez isso é porque sabia muito bem o que queria. E tu foste estúpido, por isso que te preocupas agora, se tivesses aproveitado não estavas assim.
-Tu não me deves estar a ouvir, de certeza. Eu não devia era ter-lhe respondido, nem depois ter dito o que disse. Acabava logo ali.
-Acabava para ti.
-E como é que eu podia adivinhar? Mas assim meti-me nisto. Pode parecer egoísta, mas se ela não me tivesse beijado acho que nem teria dado que estava ali. Mas agora não consigo parar de me preocupar com ela, dá-me vontade de correr os bares e discotecas da cidade toda à procura dela, pareceu-me toda lixada. E fazer o que fez não resolve nada.
-Mas quem és tu para dizer que não resolve nada? O destino pôs-ta á tua frente e só tinhas era de aproveitar, foi tudo o que o destino te pediu.
-Que se foda o destino! Não acredito nessa merda. Eu bem lhe vi os olhos, não me perguntes como mas sei que alguma coisa não estava bem.
-E sempre a dar no mesmo, estás sempre a inventar. Já pensaste que ela poderia querer apenas uma curte? Já pensaste nisso?
-Duvido muito. E não é só isso, é comigo também. Foda-se, sinto-me tão vulnerável. Bastou um beijo dela e fiquei logo todo maluco, não me consegui controlar, como se não estivesse em mim até lhe ver os olhos. Estive tão mal, não acredito que estive tão mal. E acho que o que lhe disse foi como que a responder a isso, a vingar-me de alguma maneira. Porra, só dá-me vontade de vomitar. - abanou a cabeça - E dizer tudo isto, porra, tu conheces-me, sabes que não sou destas tretas, sempre a falar, foda-se! E a culpa disto é tua, tu é que me fizeste falar e agora tenho de a encontrar. - abanava a cabeça, levou as mãos à cara e deixo-as escorrer pela face, subindo-a. De seguida levantou-se
-È assim pá, que é queres? Nada a fazer, um gajo não consegue resistir. Olha, dá mas é aí uma passa. - e pôs-lhe de novo a ganza à frente da mão.
-Deixa estar, não me apetece. Porta-te. - e saíu a correr.

15 comentários:

Maria Francisca disse...

Descreves um ambiente como ninguém.
Ouvir? Até parece que quem esteve a falar só foste tu, e que estavas a ter um daqueles pseudo-discursos e que eu te estive a aturar.
Não te isoles tanto, pode ser que nunca te tenham cativado mas se o fizeres como cativar?
Vais ver, às vezes as pessoas parecem uma coisa mas no fim...
Olha, a minha melhor amiga, a Margarida C' (dos blog's) eu antes detestava-a. Não a suportava mesmo. Pintei uma pessoa completamente diferente da realidade. E no fim ela é hiper hiper hiper parecida comigo. (Mas não somos umas gémeas, isso seria enervante. -.-)
Percebes o que digo? :)

Maria Francisca disse...

Tens que tentar, eu sei que é dificil.
Bolas, se fossemos gémeas não suportaria.
Conselhos? A sério?

Maria Francisca disse...

Sim, eu quero que oiças. Vai fazer-te bem.
(Não consigo controlar a minha preocupação com as pessoas e o alcance do seu 'bem-estar', desculpa.)

Maria Francisca disse...

Pessoas como eu? (Desculpa, mas quando me dizem isso nunca percebo. Sempre me achei... 'normal' (?) acho eu.)

Maria Francisca disse...

Se estou bem assim agora sinto-me mais descansada, ahah.

Maria Francisca disse...

Ideias? Muitas.
Tempo para todas..?

Joana M. disse...

O teu e-mail comoveu-me, Nuno. Nunca pensei que te fosses dar ao trabalho, ao tempo de me dedicares algo assim. Foi um gesto tão bonito que não existem palavras para to agradecer. Surpreendeu-me tanto, sabes? Tu dás-me força. Tu não desistes de mim e eu guardo-te um imenso carinho por tal.

Um beijo da mulher que não desistirá de ti, vez alguma. ')

Maria Francisca disse...

Se eu te disser tudo depois perde a piada

Maria Francisca disse...

Não, não estiveste. Não te preocupes.
Estava cansada e fui dormir um bocadinho(dão).

Maria Francisca disse...

A sério? Podias ter dito logo isso, mas percebo porque não o fizeste. Acho que sim.
(Por acaso é irónico dizeres isso hoje. Acabei a 2ª parte disso.)

Maria Francisca disse...

Não, nada disso.
Nós antes nem eramos assim grandes amigos. Eramos só conhecidos do blog. Se quiseres, tudo bem.

Maria Francisca disse...

Eu gostava.

Maria Francisca disse...

Ai mas queres fazer a mesma históra com uma diferente versão?
Podemos criar outras personagens, ambientes, histórias, pessoas e enredos...

Maria Francisca disse...

Dá-me o teu mail, é mais fácil.

Maria Francisca disse...

Mas dá-me na mesma. É mais fácil falarmos por lá.