Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Um

Sentado. As pernas arrancam lascas dum muro de mármore que não sei onde termina, talvez num dos prédios de 5, 6 andares que atrás de mim sofreram espirais dum pincel enferrujado, e agora misturam tons de preto, cinzento, azul-escuro. As paredes são essaltadas por cartazes, menores que a minha mão se vistos em perspectiva. Um rectângulo cinzento vai rodando letras verdes, elas veem em tracinhos e umas que se atrasam. Fico a saber que rondam as 8 horas, os 17ºC foram com os minutos.
Num cruzamento perto, os semáforos decidem-se pela mudança de cor, fazendo com que uma montanha se mova à minha frente. Os carros formam carreiros noutro país, num território que faz fronteira o outro lado da rua; são apagados pelos novos cumes. O som duma borracha. O papel ficou borrado e um estrangeiro lança o braço esquerdo janela fora, o direito faz música numa tampa preta que se afunda numa espécie de roda, mesmo à frente de onde se sente. Aqui e ali portos amarelos abarcam novas culturas, costumam andar com um letreiro em cima.
Uma cara de sono, sacos a farejar o chão, pernas que deixam o corpo atrás, olhos mais rápidos que a visão, cigarros no luar do queixo enquanto a mão encontra o isqueiro que se deixou no escritório, leilões ao telemóvel, uma cara suja cujo caminho, misteriosamente, se abre mais à sua passagem, fazendo os braços e as malas dos outros chegarem-se mais perto do corpo, um vestido que se ajusta a cada passo, assobios na boca dum homem, mãos nos bolsos e cara baixa.
Uma criança dá passos maiores a evitar as pedras escuras da calçada. Tem um balão na mão que vai respondendo erradamente às rotas do vento. De início, o vento ignora, até que acaba por sacar da palmatória e, através do movimento do ar, puxa o balão para trás, de esticão. A criança, sem ligar aos ensinamentos, sorri. A mulher que o leva pela mão recriminar-lhe o jogo das pedras escuras com um grito que, daqui, se torna bem audível. O balão estaca-se ao vento. Raras reprimendas, a mulher desce a cabeça e solta uma frase, para de falar para ver onde vai. As bochechas da criança tornaram-se enormes pelo ar que agora levam dentro, nem por uma vez levantou os olhos e os pés tornaram-se lentos.

A rua enorme, os prédios riem-se do vento e aguentam o terramoto, à minha esquerda uma rotunda a bombear diversas direcções, no outro lado outra montanha assenta praça. Em cima dessa montanha, uma imagem que não conheço anda ao vento, sempre nos melhores lugares. Na próxima mudança de cores, vejo-a outra vez.

2 comentários:

Sophia disse...

Está simples e bonito :)

Maria Francisca disse...

Sinceramente, não acho que esteja nem simples nem bonito.
Está duro, está complexo.
Sim, contas com uma voz que sorri as brincadeiras de calçada, mas a testa franzida contraria a voz.
Não é simples, é Nuno.
Nuno não é simples, Nuno é Nuno.
Compreender Nuno não é fácil, Nuno é um estilo muito peculiar.
Eu compreendo.
Gosto de vento, posso ser o vento?
O vento está a sorrir-te.