Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Distorção

Ao passar junto aos altos espelhos via-me alongar. A rua descia até um pequeno cruzamento, com a calçada a fazer-se sentir debaixo dos pés, havia chovido há pouco e pequenas areias rolavam, saídas das pequenas ramificações que as haviam prendido. O olhar ora aí, posto no chão, ou de perfil, com o braço contrário a cair até ao bolso, vendo-me gelatinar em montras momentaneamente sem nada, vãos de prédios cujos arquitectos tinham permitido a entrada da rua e, por consequência da ocasião, também a minha. O passo não se tinha alterado, nem o comprimento médio dos edifícios, mas reparei que as pontas do cabelo se iam perdendo, já a saltar para o resto da cabeça e início do tronco. Continuei a descer, sem sentir mudanças na posição, sem notar diferença no vento que não fosse pequenas folhas e papeis a girar quase nem notava. A rua cada vez mais prestes a rasgar-se em duas e, no reflexo, ia-me aproximando cada vez mais da minha sombra, presa aos calcários e granitos que havia deixado para trás, suavizando entre areias, restos de lixos e imperfeições da calçada, à frente uma forma estranha a simbolizar o que apostava serem os meus sapatos, ao mesmo tempo que sentia, directamente na face, o vento que vinha de frente. De seguida tive a sensação de ter dado um salto se me aperceber, ao me ver como destino de buzinas de carros, aproximando-se furiosamente, longe dos reflexos e de procurar saber se já estaria totalmente recomposto, apercebendo-me que estava no meio da rua, tendo de escolher rapidamente uma das duas ruas que agora haviam surgindo para escapar ao contacto com o ferro dos automóveis. Uma aparece como subida íngreme e de mau pavimento dando a um miradouro, a outra caminho plano entre intermináveis e simpáticas lojas e cafés.

P.S: Mais uma aparição do que um regresso.

À Mafalda, que me faz sentir na obrigação de escrever. :P