Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


quarta-feira, 31 de outubro de 2012

do tempo nada considerei
não concedendo desse modo ao tempo
tempo algum a alcançar o tempo desejado

a memória irá impor-se, certo que irá
como presença da situação criada
num momento de espontaneidade vincada

entra assim em cena a descontinuidade
que separa a anterior perspectiva futura
da carga que será recordação perpétua

terça-feira, 30 de outubro de 2012

há algo que te quero dizer
que sei que te devo dizer
(seja qual for a consequência associada)
ainda que não sei bem como to dizer
(pelo menos de uma forma correcta)

e esse algo
é algo que te vou dizer
ainda hoje, acredita

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

fecho os olhos
procuro fechar os olhos, devo fechar os olhos
e suster a respiração, a vontade de chorar
que me chega como necessidade, um impulso
a reprimir, enrugando a face

sendo que é do ti que fujo
é de ti que devo fugir, de ti me devo fazer fugir
isto por não resistir às palavras que gramaticalmente
se alinham aos teus lábios, à tua face, aos teus membros
ao teu corpo, espontaneamente

e apesar do meu sorriso, da minha atenção
nada sei do como te acompanhar
e paralisa-me o pensamento, saber que é apenas do teu abraço
que necessito para, finalmente, transbordar

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

há em mim
o ser que surge quando contigo
a atenção que às tuas expressões dedico
como se, fechados os olhos
mentalmente seguisse as notas de um violino
sendo a melodia o teu sorrir
acompanhado pelo conjunto que se forma
e que se estende até aos teus olhos, os teus cabelos
a tua face, tu por inteiro

as preocupações afastam-se
e algo em mim tende a escapar-se
viro os olhos um segundo
e uma porta com o vento aberta
sem que nada capaz de fazer dado que sem chave
- ou sem a saber usar -

as frases mais soltas num instante
as frases pela boca sem delas dar conta
procurando, ao que me apercebo, seguir a melodia
ao mesmo tempo que do vulcão
- juro que, por aí, um vulcão
medindo movimentos -
um sorriso que me desperta da distraída contemplação
um pulsar mais quente e vigoroso comprovando a existência

e há em mim
o ser que aparece quando de ti afastado
aquele que dessa distância
- e por essa distância -
se torna consciente do quão presente te tornas
dado que após, entre ruas, esquinas, multidões
um sorriso que me invade a face
um suspiro que antecede um respirar convicto
como se com a inspiração tu, após a inspiração
a tua voz de novo, a necessidade da tua voz de novo...

e esses dois seres
- tão estranhos para mim, ainda que em mim -
quebram as dúvidas que poderia ter
em relação ao que sinto
lembre-me eu da sua materialidade
e os consiga fazer nascer

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

o chão folhas, pequenos galhos
papéis que anteriormente algo
por hora segregando
- mesmo sem que ninguém perto -
que das gotas sinal algum
e estas bolsas razão outra

e assim certo que a chuva um outro plano
- juro que a chuva lá fora um outro plano -
próprio de sapatos ensopados, e fora
artimanhas associadas à arte de galgar janelas
pontos no vidro à socapa que se agigantam a ilusões de óptica
não esquecer, contudo, as correrias, o splash
os risos incompreensíveis de quem as gotas compreende, eu não
dado que pela mesma fonte eu não aqui

vozes jorrando, o meu ouvido maior - outro lugar -
ondas em propagação, uma abertura
e num instante adeus - agora sim, a chuva -
o olhar mudo de pescoço estendido, um segundo
pertencente à janela de trás de qualquer táxi
táxi esse que não reconheço, condutor não vi
e o adeus reforçado, o adeus repetitivamente
a minha memória o adeus
sendo que o adeus também um rosto
e o rosto um anterior sorriso, sons com o sorriso
expressões gestos vozes

um peso a chuva, a chuva um peso
as gotas em suspenso, queda nenhuma

voltando atrás, talvez galhos o chão

Não estou habituado
a que o coração bata sem doer

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

deixava os passos para trás
imersos num qualquer plano da calçada
enquanto um carro subia a rua
e dele só tomava consciência já longe
em surdina, num qualquer virar

ainda que para trás não só calçada
no caso de ter sido calçada o que pisei

sem que me sugasse o olhar
vozes incomprenssíveis a curta distância
ao passar notei alguém no seu corpo mas longe de si
decorando uma saída de metro, aquela hora saída nenhuma

a atravessar a rua tomava nota das montras
                                           caso o seu olhar mo permitisse
                                           caso o seu olhar não exigisse o meu
                                           caso o seu olhar não intimidasse o meu
na procura de um reflexo, finalmente socorrido
por uma claridade fora de horas

e ouvia-a

e ouvia-a, pensando no que falar
ouvia-a com receio de minhas parcas palavras
ouvia-a e as suas palavras ganhavam forma em mim
ouvia-a como se de uma melodia se tratasse

um rio irrompeu pela avenida
sem que qualquer um de nós alterasse o ritmo de passeio
e onde outrora veículos deslizaram aves, em refúgio da Lua

o não reconhecimento do terreno não se revelou pernicioso
tendo as nossas voltas alcançado o ponto anteriormente definido
pátio interior como ante-câmara, viagem ao fechar de um bar
palavras que se seguiram sem em nada pensar
a certeza no regresso de um dado sentimento

terça-feira, 9 de outubro de 2012

um desejo
poder falar-te sem do meu tom desconfiar
sem receio dos sentidos a que me poderia envolver
livrar-me da mão reticente, trepando a nuca
esquecida a vasculhar espaços que se apresentam
baixando o olhar de forma a disfarçar
o olhar que enquanto distraído te lanço
deslocando-me
e que jurava ver devolvido
tomo-o como devolvido, absorto em mil cogitações...
de repente estás ao meu lado, prestes a sussurrar-me qualquer coisa
mesmo que distante, mesmo que da minha distracção
resposta alguma
e, no entanto, desejando ser eu capaz de
um toque natural após dado, sem que previsível antes de o fazer

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

a mesa vê-se cotovelada
dedos que se agigantam e num instante
os cinco agarrados sem que atente aos cinco agarrados
os cinco agarrados por si numa cartilagem que inquirirá a matéria
a chegada é audível mas do outro lado do tampo
resposta alguma, resposta alguma no mesmo tom
já que decerto ondas sonoras galgando o meio
e pela chegada, ou pelas ondas, ou pelas duas
ergo lentamente o pescoço, redefino a visão
deslocando-a do plano das paredes em que me encerro
para o plano para lá destas paredes
longe dos sentidos
que se encerram nesta divisão, sentidos não esquecidos, possivelmente
e que se metamorfoseam na cadeira em que baloiço
com o seu ranger, com a sua rugosidade advinda do uso
fosse ele qual fosse, e que agora de nada serve recordar
os sentidos estas pequenas folhas pelo chão
e o próprio chão como sentido
mas sentidos esses agora para trás, nem que se tornem apenas momentaneamente para trás
e agora o lá fora, seja o lá fora para o qual agora me viro desta janela o que for
e que poderá ser o carro que me foge lentamente da visão
e cujo significado desconheço, mas cujo barulho se estende mesmo após o seu escapar
da visão que agora da rua apenas a rua
sabendo, contudo, que a rua não só a rua
e a minha face que agora examino no vidro
com a rua em contexto a minha face no vidro
mas não devo jurar que a minha face no vidro
talvez se torne mais fácil garantir o vento
 e o que a ele se prende ao mover-se
um chapéu tornado ave rodopiante com uma pessoa de mãos estendidas a reboque
ainda que do chapéu sinal nenhum em instante
sinal sim
dos braços estendidos que depressa se unem aos joelhos
e que acompanho sem pestanejar numa respiração que se evaporou com o olhar