Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Street Spirit

Vou numa rua de pó e em cima dum telhado noto os olhos dum gato. O gato parece-me preto mas é de noite e, escondido atrás de arvorés que se agigantam sobre telhados, não o distingo bem. Sinto o pó levantar-se a cada passo, os passos tornam-se lentos e as sapatilhas aspiram o pó, como uma folha que se vira sem a ler por me ocupar apenas dos olhos do gato; não oiço nem vejo mais ninguém. As patas movem-se sem eu as notar, rápidas enfiam-se umas nas outras; vai de perfil, olhando para mim, a saltar de telhado a telhado. As casas estão coladas umas às outras, sem espaço para outras ruas, o mesmo acontece do meu lado, continuo em frente.  No horizonte o fim não aparece, ou pelo menos não aceito como o final duma rua enorme onde os dois lados se juntam, as duas filas coladas. Acabar em "V" só pode ser ilusão de óptica.


segunda-feira, 28 de dezembro de 2009

One move



...that may left me, is problaby just waiting that I move, by myself. Easy, no excuses.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Anfiteatro

Aluguei o Louvre para quadros que imagino. Os anteriores saíram, deixaram apenas as molduras, pedido meu para de noite perder-me por salas com elas ao ombro.
Nessas horas, o pé direito fica coxo, gasta-se tal como a madeira raspada no chão, fico com o som de pernas marteladas nos ouvidos, a cada novo passo. A falta de luz abre caminhos em direcção a portas fechadas, a cadeiras que tombam, candeeiros que perdem vida depois de o vidro beijar o chão, mil estilhaços.
Nas paredes noto quadros antigos. Rectângulos em tons mais claros, aos quais tento recordar traços, juntar cores, formar imagens; bater a uma porta que deu abrigo e não dei atenção merecida. Restos de tinta pelo chão, folhas de cerejeira com os efeitos do vento. Nas paredes soletram-se infiltrações, rachas conjugam verbos no pretérito.
Dou um passo atrás. Tiro uma moldura, deixando as outras em sonhos contra a parede, onde não as posso ver dado a parede desaparecer nesse instante. Do corredor resta uma carpete vermelha que pode ter 5 metros ou 5 quilómetros, não reparo, reparo apenas na parede que se resume a um pequeno pedaço, há poeira em cima dos tijolos agora a descoberto. Estendo os braços, entregando a moldura ao rectângulo em que encaixa. Uma brisa instala-se; o cabelo voa, há tijolos que vão caíndo da parede, pó para dentro do rectângulo. Os meus olhos tentam então subir degraus, ganhando força; o pescoço reticente, os olhos sem acreditar. No lugar da tela olhos, movimentos, correrias, puxões, passos lentos, uma enormidade em cores e formas abstractas. Foco o olhar à procura. Algo. O vento, apesar de manter a mesma intensidade, agora torna-se capaz de me mover, as pernas abanam, ainda com o olhar focado, fazendo-me cair para trás, até ao limite do corredor, onde há fronteira com o vazio.
Tenho atrás de mim as molduras, e as suas marcas nas costas. A moldura da parede arranca-se, esperando até outra noite, dando lugar a outras que nos minutos seguintes encontraram outros pedaços de parede, até que eu caía novamente e recomece, não só para relembrar, não só pela sua arte, não só pela sua beleza - um coração cheio sentado na poltrona a rever o seu filme favorito - mas muito para procurar qualquer coisa em imagens, e tentar perceber o porquê de cair quando o vento se apodera do meu equilíbrio; olhos baixos, mãos nos bolsos enquanto pontapés a latas, respirar complicado, vontade de correr a todo o gás, sem saber onde; um alicate a apertar cada vez mais uns arames ferrugentos. Volto a tropeçar em molduras.

Gnomos uns em cima dos outros depois duma queda em avalanche, baterem no chão implorando aos de cima que se despachem, com os pés em cima de corpos em turbulência, cairam de novo. Setas que dum lado ao outro rasaram os olhos, e por vezes nem a deixar-me atingir me dignei. Agora, em cima duma montanha desgastada, só rochas castanhas, secas, sentado com o vento nos ouvidos, os olhos à procura de imagens que já não passam, os lábios imóveis pelo frio. Uma mão a puxar os cabelos, a outra estudando o relevo da barba. Pequenas lágrimas em gelo, capazes de rebolar toda a montanha pelo Sol.


O significado de expressividade


terça-feira, 22 de dezembro de 2009

sábado, 12 de dezembro de 2009

Caleidoscópio

Perdi-me num tubo onde imagens mudam de posição em função do olhar. O meu corpo inclinadinho numa cadeira nem sonha que o deixei, a mão esquerda quase que roça o chão, os olhos deixaram escapar qualquer coisa que foi aspirada para um tubo e de seguida fecharam-se, uma mosca ronda-lhe os ouvidos mas não acorda. A partir duma pessoa que foco ao fundo, as imagens vão-se movendo em espiral, aumentando cada vez mais os braços, passando enormes por mim, de todos os lados. O jogo de cores tem-me feito perder, como correr de olhos fixos em direcção o SolPasso então às mais variadas reacções, desde sentar-me com a mão no queixo, olhando de vez em quando para ver se a apanho de surpresa e encontrar por lá qualquer coisa deixada por engano, ou até correr pelo tubo fora, de olhos no foco, indo de frente contra a confusão de cores e luzes, sem me lembrar sequer que respirar pode ser essencial, e, por pena minha, deixando algumas imagens para trás, dado só notá-las depois, quando a distância teima em manter-se. Dou um grande suspiro, tento respirar e por vezes a tosse surge, as imagens parecem passar mais depressa, envolvendo-me. Os olhares que lanço ao foco não parecem encontrar ninguém. Levo a mão à cabeça, baixo-me, e sinto algo a tentar escapar em forma de água.

As imagens vão passando e a qualquer uma dá vontade de agarrar e poder ver tudo o que têm dentro. Ao jeito duma mão que se molha num rio, baixar-me devagar para sentir a corrente, tentar pegar numa gota e vê-la de todos os ângulos, aproveitando o Sol para formar um arco-íris, um pequeno diamante, enquanto o resto da mão está molhada, a gelar-se devido ao vento, sem que com isso me importe, pois com a outra mão já vou passando ao de leve, com um dedo. Mas com isso as restantes perdem-se, deixo de as ver, mesmo às que tentam reagir a essa paragem. Pode mesmo haver o risco de o tubo escurecer aos poucos, e do foco já nenhuma imagem ver, mesmo que insista, mentalmente, recordá-las e tentar visualizar as cores.

Gostaria de chegar ao foco sem perder uma única imagem nem me deixar confundir com as cores, e aí seguir, já fora do caleidoscópio.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

For the first time I figured out

Escrever para mim deve servir para me vencer a mim próprio, para ganhar à escrita, pois tenho mesmo de ganhar quando se trata de algo importante e fundo em mim, do género "anda cá rapaz, apresenta aqui estas contas, anda cá não fujas, para que foi isto, ah? Diz-me, que andas tu a fazer?" Vencido esse desafio, depois de tratado com todos os cuidados necessários - já que ser assim apanhado de surpresa não é fácil, imaginem um peixe pequeno sozinho no mar, atira-se um fiozito ao calhas para lá e calha logo em acertar-lhe - desbloqueio essa parte, e mesmo que apareça logo outra emoção nesse local, se agir depressa não terei nem tempo para a ver de longe, com a atenção necessária, e tenho a certeza que a partir daí dividi-se em parcelas menores, formando dentro de mim múltiplas partes, de diferentes tons e para diferentes propósitos, esperando que com isso não esqueçam como começaram. Sei que pode parecer estranho, mas devo funcionar um pouco assim, talvez também por isso nem sei se escrever é aquilo que faço, ou se já alguma vez me consegui vergar a 100% aqui, mantendo ao mesmo tempo uma certa poesia, instrumento fundamental para mim, guia-me mesmo.

I am winning at the half-time, I hope to continue with the rythim because I`m feeling fresh. I will keep you in touch.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

A solução é:

não pensar! Ou pelo menos tanto, esquecer a maior parte das possibilidades, principalmente as que dizem respeito ao que me pode acontecer - completamente inúteis estas aqui -, e tentar atenuar as que podem causar embaraço ou raiva nela.


O que eu merecia era ser cortado às postas e enviado num pacotinho para a Sibéria.

sábado, 5 de dezembro de 2009

Desculpas... e não só.

Olhares que se cruzarem sem necessitarem duma palavra anterior, um sorriso, e assim continuaram, tantas e tantas vezes, sem essas palavras de parte a parte; acasos? Segundos onde o mundo se mostrava, por vezes, quem sabe (ao certo só duas pessoas), minutos sem cessar. Uma viagem no tempo, alguém ao nosso lado pergunta "se estamos a dormir", nos "o quê?", "a caneta que me emprestaste, toma" como resposta, "ah, a caneta, obrigado". Nenhuma certeza (nenhuma certeza?, que cobardia, que inexperiência, nesses momentos frases que se repetem cabeça "não é possível, não é possível"), para piorar um vulcão que acordou devido a um sismo com epicentro noutro lado, hesitações, réplicas que o meu sismógrafo não conseguia descortinar a origem mesmo não se esquecendo nunca de marcar a intensidade, escalas rebentadas, novos máximos; uma desculpa que tomei... Rios de lava que se alimentam de palavras. Os olhos iam e vinham e o meu peito para a frente, com o ar a querer sair, um som a querer sair mas que voltava para trás, engolida, uma onomatopeia que se dignasse. Pessoas pelo corredor mas nenhuma outra com olhos, pessoas contigo mas nenhuma outra com olhos. E eu um megafone sem fim, um ser onde o cérebro não tem influências, um tubo que começa junto a regiões do pulmão, junto ao lado esquerdo - de referir ainda a influência duma auto-estrada que vêm por aí acima até essas bandas e que tem tendência a bloquear - parco em palavras, em expressões. Agora a dor visível nesses olhos, eu tomado como fantasma, um susto, e a dor sentida em mim por essa outra que foi causada; o último olhar atestou isso mesmo, e pela primeira vez uma consciência convicta do que causei, e do que já perdi. A certeza toma o lugar do risco, e as hipóteses desaparecem... Um deserto habitado interminavelmente por tempestades de areia, um rosto que ficou à sua mercê; no fundo o que semeou. Segunda terei uma carta na manga (não falo apenas metaforicamente), palavras que correntemente nunca sairiam, não com a mesma lógica e verdade, com uma caneta que se baseou nas emoções que vinham naturalmente; embora com poucas esperanças que o prazo de envio ainda possa ser respeitado, meter requerimentos, fazer exposições, últimas instâncias... Vergonha, do que fiz.

Na cabeça a beleza desses olhos, e o quanto têm. Olhos com alfabetos dentros, diversas línguas, dialectos. Apenas um som pedido.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

...à procura duma realidade poética

Tenho andado a encaixotar as ideias de mansinho, tento ao de leve pegar nelas, quando estão distraídas, e sem fazer muito barulho - convém mesmo nem pensar muito quando estamos a fazer tal acção - fecho-as na caixa e levo-as para o sótão, onde as deixo a encher de pó. Pode acontecer que com o tempo a caixa comece a ficar mais frágil, a humidade pode começar a desfazer o cartão, e o papelinho que deixei nela a indicar-me qual ideia era para um possível utilização no futuro, ao jeito daquelas prateleiras que os farmacêuticos usam quando vão lá atrás, ficou com o carvão do lápis que usei todo dissolvido. Aí, cria-se um buraquinho momentâneo e puff, vem a caixa por aí abaixo, desarrumando tudo por onde passa e, na maior parte das vezes, deixando a ideia à solta. O tecto, agora mais frágil, vai-se enchendo de pequenos buraquinhos, e aí tenho de voltar ao mesmo. Tenho ainda usado uma vassoura para tratar do passado, mas como tem sido tudo ao mesmo tempo é preciso ter cuidado para não ser as minhas mãos a esconderem as ideias, e ao assustá-las, deixá-las naquelas cantinhos mesmo difíceis de chegar, onde muitas vezes temos de pedir a alguém mais alto para chegar. Conseguidas as arrumações, torna-se mais fácil respirar, e então a mim que tanto o pó incomoda, faz-me respirar e dá-me uma sensação de "seco".

"Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo."
Clarice Lispector