Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


sábado, 26 de dezembro de 2009

Anfiteatro

Aluguei o Louvre para quadros que imagino. Os anteriores saíram, deixaram apenas as molduras, pedido meu para de noite perder-me por salas com elas ao ombro.
Nessas horas, o pé direito fica coxo, gasta-se tal como a madeira raspada no chão, fico com o som de pernas marteladas nos ouvidos, a cada novo passo. A falta de luz abre caminhos em direcção a portas fechadas, a cadeiras que tombam, candeeiros que perdem vida depois de o vidro beijar o chão, mil estilhaços.
Nas paredes noto quadros antigos. Rectângulos em tons mais claros, aos quais tento recordar traços, juntar cores, formar imagens; bater a uma porta que deu abrigo e não dei atenção merecida. Restos de tinta pelo chão, folhas de cerejeira com os efeitos do vento. Nas paredes soletram-se infiltrações, rachas conjugam verbos no pretérito.
Dou um passo atrás. Tiro uma moldura, deixando as outras em sonhos contra a parede, onde não as posso ver dado a parede desaparecer nesse instante. Do corredor resta uma carpete vermelha que pode ter 5 metros ou 5 quilómetros, não reparo, reparo apenas na parede que se resume a um pequeno pedaço, há poeira em cima dos tijolos agora a descoberto. Estendo os braços, entregando a moldura ao rectângulo em que encaixa. Uma brisa instala-se; o cabelo voa, há tijolos que vão caíndo da parede, pó para dentro do rectângulo. Os meus olhos tentam então subir degraus, ganhando força; o pescoço reticente, os olhos sem acreditar. No lugar da tela olhos, movimentos, correrias, puxões, passos lentos, uma enormidade em cores e formas abstractas. Foco o olhar à procura. Algo. O vento, apesar de manter a mesma intensidade, agora torna-se capaz de me mover, as pernas abanam, ainda com o olhar focado, fazendo-me cair para trás, até ao limite do corredor, onde há fronteira com o vazio.
Tenho atrás de mim as molduras, e as suas marcas nas costas. A moldura da parede arranca-se, esperando até outra noite, dando lugar a outras que nos minutos seguintes encontraram outros pedaços de parede, até que eu caía novamente e recomece, não só para relembrar, não só pela sua arte, não só pela sua beleza - um coração cheio sentado na poltrona a rever o seu filme favorito - mas muito para procurar qualquer coisa em imagens, e tentar perceber o porquê de cair quando o vento se apodera do meu equilíbrio; olhos baixos, mãos nos bolsos enquanto pontapés a latas, respirar complicado, vontade de correr a todo o gás, sem saber onde; um alicate a apertar cada vez mais uns arames ferrugentos. Volto a tropeçar em molduras.

Gnomos uns em cima dos outros depois duma queda em avalanche, baterem no chão implorando aos de cima que se despachem, com os pés em cima de corpos em turbulência, cairam de novo. Setas que dum lado ao outro rasaram os olhos, e por vezes nem a deixar-me atingir me dignei. Agora, em cima duma montanha desgastada, só rochas castanhas, secas, sentado com o vento nos ouvidos, os olhos à procura de imagens que já não passam, os lábios imóveis pelo frio. Uma mão a puxar os cabelos, a outra estudando o relevo da barba. Pequenas lágrimas em gelo, capazes de rebolar toda a montanha pelo Sol.


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