Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

...à procura duma realidade poética

Tenho andado a encaixotar as ideias de mansinho, tento ao de leve pegar nelas, quando estão distraídas, e sem fazer muito barulho - convém mesmo nem pensar muito quando estamos a fazer tal acção - fecho-as na caixa e levo-as para o sótão, onde as deixo a encher de pó. Pode acontecer que com o tempo a caixa comece a ficar mais frágil, a humidade pode começar a desfazer o cartão, e o papelinho que deixei nela a indicar-me qual ideia era para um possível utilização no futuro, ao jeito daquelas prateleiras que os farmacêuticos usam quando vão lá atrás, ficou com o carvão do lápis que usei todo dissolvido. Aí, cria-se um buraquinho momentâneo e puff, vem a caixa por aí abaixo, desarrumando tudo por onde passa e, na maior parte das vezes, deixando a ideia à solta. O tecto, agora mais frágil, vai-se enchendo de pequenos buraquinhos, e aí tenho de voltar ao mesmo. Tenho ainda usado uma vassoura para tratar do passado, mas como tem sido tudo ao mesmo tempo é preciso ter cuidado para não ser as minhas mãos a esconderem as ideias, e ao assustá-las, deixá-las naquelas cantinhos mesmo difíceis de chegar, onde muitas vezes temos de pedir a alguém mais alto para chegar. Conseguidas as arrumações, torna-se mais fácil respirar, e então a mim que tanto o pó incomoda, faz-me respirar e dá-me uma sensação de "seco".

"Não entendo. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entender. Entender é sempre limitado. Mas não entender pode não ter fronteiras. Sinto que sou muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um dom. Não entender, mas não como um simples de espírito. O bom é ser inteligente e não entender. É uma benção estranha, como ter loucura sem ser doida. É um desinteresse manso, é uma doçura de burrice. Só que de vez em quando vem a inquietação: quero entender um pouco. Não demais: mas pelo menos entender que não entendo."
Clarice Lispector

2 comentários:

MafaldaMacedo disse...

onde andam as tuas letras mais positivas? não estou a gostar, ai não não.

Tudo de mim. Ou quase. disse...

Agora sim. Entendo. Bem. Talez não tão bem assim. Um pouco. Mas não o suficiente...