Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


terça-feira, 3 de novembro de 2009

A educação duma lata

Está à sua frente uma lata, a baloiçar no tampo duma mesa redonda. À lata já não pertence aquele papel que se enrola à sua volta e a torna colorida, igual a outras da mesma série e diferente das restantes. Esta acabou por ser edição única, defeito de fabrico, serviu para se guardarem cartas antigas por lá. Alguém agarrou-as todas duma vez e meteu-lhes um elástico, duas dobras para apertar melhor.
As cartas, com o tempo, foram preenchendo o espaço entre si. O pó meteu-se onde o ar usava correr, e as cartas coloram-se umas às outras. Unidas, o maço passo a ser visto como um todo, em que a mais variada linha, anteriormente escrita numa letra cuidada, se torna imperceptível. A tinta começa a misturar-se nas folhas à volta, perdendo-a onde originalmente foi escrita para emigrar em zonas já abaladas por outras tintas, criando frases sobre frases.
Caso a alguém lembre a remoção do elástico, demorará até a marca do elástico desaparecer, serão necessárias unhas pacientes para, pelo menos, não rasgar, e esperar que as cartas percam o aspecto corcunda de tanto tempo enroladas; além da maior dificuldade que será lê-las agora.
Apertadas naquele elástico, presas numa lata cinzenta, dum alumínio moldável, e apenas com visão para o interior da lata, as cartas acabam esquecidas do mundo, com as suas palavras a entrar em decomposição. Se às cartas forem atribuídas a eternidade longe da tal mão capaz de as soltar, ao menos, se possível, lhes atenuem a pena, dando às letras e pontos, tinta permanente; como quando usada por uma caneta nova.
Alguém volta costas e, puxada pela deslocação, a lata deixa de abanar, rodando agora pelo chão. As cartas, a querer saltar da lata e com elástico a perder força, vão-se rasgando à medida que raspam com outros objectos, mudando também a direcção. Por fim, bate contra uma parede, dá uma pirueta atrás, e para. Todos os móveis da sala foram mudados, a tinta da parede trocada.

3 comentários:

pecado original disse...

Tu arranjas histórias para tudo. Fico maravilhada ;)

pecado original disse...

;)

MafaldaMacedo disse...

Preciso de oxigenio e dois dedos de conversa, vais estar pelo msn hoje?