Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


sábado, 21 de novembro de 2009

Recovery

Escadas onde no início procurava vestígios, uma erva que se enrolasse degrau acima, retratos pelas paredes, música ambiente, ao invês ampulhetas estragadas pelo caminho, o último grão caí e a ampulheta gira. Antes dos primeiros passos, somente um foco sobre uma cabeça e umas pernas dobradas, as mãos em primeiros contactos com os joelhos, fora dessa luz nem o vão de escada à distância de 5 dedos se notava. Suspirou o suficiente e tentou seguir viagem, aos primeiros apalpões deu com um degrau, depois o seguinte, e começou de gatas. Com o foco para trás, e sem conhecer por onde ia, calhava em desequilibrar-se e caía. Ficava minutos estendido até se recompor, novamente com o foco em cima, a funcionar como um dedo que tenta agitar um corpo inamovível, voltava a espernear e procurava novamente o ínico das escadas. Ia decorando os passos, o cheiro dos degraus, reconhecia nos seus ouvidos o barulho da areia a escorrer, e à medida de tanto bater com a cabeça no chão, lá acabou por avançar os primeiros 5 degraus e chegar àquela parte onde o corrimão começa, e apesar do resultado que sentia dentro de si derivante das quedas - a última foi mesmo das piores -, pôs-se de pé. Alisou primeiro a mão direita, depois com a esquerda recuperou o tacto da aspareza da madeira, quando velha. Virou costas para um olhar sobre o foco, à saída das escadas, como que pensando ser essa a última vez que o veria, respirou fundo e começou a subir, numa escada que se enrola pelo céu. As ampulhetas vão ganhando sentido, no corrimão recorda toques, a ideia de subir fá-lo recordar sonhos antigos. Por vezes pernas fraquejam, mãos percorrem testas, sentimentos invadem o raciocínio, mas hoje sentiu com mais certeza o toque duma mão estendida, talvez por vir relembrando o toque natural de algo concreto como o corrimão, talvez pelo ar que a este nível parece mais fresco, talvez mesmo pelo que este toque significa só por si, vindo directamente da base, e que lhe fez, num só passo, avançar 100. Quase que aposta já ver a porta, e sente-se seguro para o confronto com a maçaneta, sem ter de recorrer ao arrombamento. Se o vento ajudar, e mesmo com a madeira a ranger a cada movimento - logo ele que apesar de magro até têm pés grandes -, acredita agora ser capaz de lá chegar, pedindo apenas a continuação das palavras que recebe. A fonte mais alta deste rio.

2 comentários:

pecado original disse...

A tua escrita egoista... e tão bonita

MafaldaMacedo disse...

Nunooo ! hoje sonhei contigo, depois tenho de te contar :b