Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Cumplicidade


Quem é o cãozinho da mamã, quem é? Tão bonito que ele é, porquê esse canto do olho na direcção do dono? Não ligues ao dono
(eu não ligo)
deixa-o tal como eu haveria de fazer e quem sabe se um dia
(ainda estou para saber como lhe caí nas cantigas, uma pessoa quando é nova não pensa, bonita sempre fui e agora aquele badameco
juro que quando eu ao espelho naquele altura bonita, havia era coisas por trás a estragar a imagem
uma figura destas no meio de gente tão ilustre, e depois ainda hão-de falar de mim na altura de apontar as culpas mesmo que eu para ele
-veste isto, não vistas isso
ele nada, vira-se para mim a rir com aquela cara de parvo e julga que eu fico contente, e agora a juntar o almoço todo a beber, o bafo que ele deve trazer meu Deus)
mas esquece tudo isso meu querido, por mim até podias partir as garrafas que a mamã não se importava nada
(ele tão trapalhão, nódoas na mesa, garfos no chão, se não fosse eu a avisa-lo voltava a usá-los, que porco, para ele a boca só para comer dado que a refeição inteira de virado para o prato, nenhuma palavra
nem comigo...
incapaz duma conversa civilizada, de discutir uma ideia, meu Deus onde tinha eu a cabeça, tanto que me avisaram)
mas não ligas não, nunca mais lhe roas os sapatos, ou melhor, estraga-os a todos que já sei o que fazer quando chegar a casa, vais ter um jantar como nunca tiveste
(ele tão cego, de certeza que não reparou no homem que ainda não tirou os olhos de cima de mim
bela peça também este
mesmo com o que já lhe avisei continua a dar nas vistas desta maneira, tão despistados os homens, e ainda estou para perceber esta mania de se vestir como o meu marido
esta ideia de se imitarem uns aos outros só podia ser masculina
e se continua assim não dá para os chapéus do meu marido continuarem a aumentar em dois pontos, diverte-me o que lhe há-de custar a enfiá-los, bem feita)

tão querida a minha mulher, todos estes anos de casados e ela sempre a mesma, se por acaso deixo cair um garfo em público avisa-me logo que não se deve fazer
(ela não especificou mas claro que apenas em público)
primeiro tenta um simples olhar, apesar de aviso mesmo assim cheios de ternura, depois volta a entreter-se com o cão como se não fosse nada
(gosta muito do cão, embora seja óbvio pois fui eu que lho ofereci, tão bonitos os dois)
eu desvio o olhar pela mesa e aí a confirmação que qualquer coisa de diferente nela, sempre capaz de fazer o que menos se espera
(claro que não o mesmo que esta cambada de tansos onde agora pouso os olhos, conversas de política e economia, às vezes golfe ou ténis enquanto risos, apertos de mão rápidos, suaves palmadas nas costas, esperam pela sua vez para falar, as anedotas tão sublimes, tiques que só eles compreendem
a inteligência
uma vez por outra a prima que há muito já não vêem e fica sempre bem perguntar pela saúde, pelos miúdos e parece que boas notas, um ou outro já namora
a irreverência
a mais nova que têm um jeito para o ballet, nada como a primeira que em vez de mão apareceu-lhe um telemóvel incorporado quase desde nascença, o pequenote que já é o capitão da equipa de rugby
homem, o treinador muito boa pessoa, uma vez ou outra janta lá em casa
acabam-se as conversas e compromissos, horários, reuniões, portas a bater no andar de cima e mulheres dum lado ao outro tentando disfarçar a ausência do marido
-foi atender à minha sogra, anda inquieta desde que lhe descobriram diabetes, não demora nada)
e felizmente que a minha mãe uma saúde de ferro.

2 comentários:

'stracci disse...

Esse enorme hiato comunicativo nunca (ou muito dificilmente) deixará de existir.

Joana M. disse...

Não meu querido, eu fui colocada sim. Mas numa porra que não me diz nada. Quando todos os meus amigos vão para longe. Hoje todos celebram uma vitória e eu sinto-me um fracasso. Somos dois?