Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


domingo, 20 de setembro de 2009

Encontro II *

*Versão final, corrigida às 22:09.

Texto:

As palavras fizeram-me voltar na sua direcção. Novamente um vento e papéis aos saltos, o meu cabelo apanhou a boleia e uns riscos em cima dos olhos, latas com guizos dentro a suplicar liberdade, o vento parou e deixou-me uma lata a jeito de rematar. A ela, entre dois carros, nem o cabelo abanou. A mão direita apalpava o cimo do carro, enquanto o braço descia inclinado pelo vidro; a manga do vestido caiu e via-lhe pulseiras em cascata. Com os metros entre nós a ajudar, parecia-me mais pequena; ao mesmo tempo que, o seu olhar, agora fixo em mim, e o corpo, um pouco inclinado para a frente, a ocupar a maioria do vazio entre os dois carros, obrigavam-me a tentar adivinhar rapidamente o que teria ela dito, como uma carta à qual tinha de responder sem saber por onde começar. O gato, ainda na janela, miava.
-È os óculos de sol? - disse ela - Muito escuros não é?
Mantive-me parado. Se pudesse sair de mim e ver-me ao longe, com uma lata perdida junto ao pé direito, e ar embasbacado, acho que riria de mim. Ela tinha agora a mão esquerda apoiada na anca, e torcia o lábio.
-Devias pôr protector, - continuou, agora a gesticular com a mão direita - estás muito vermelho.
-Já me avisaram das radiações solares à noite, mas eu não quero crer.
-Não? Pois acho que devias, estava capaz de identificar alguns pontos negros na tua capacidade comunicativa.
-Apenas quando encontro alguém de óculos escuros.
-Mas eu não tenho óculos escuros.
-Não tens? Era capaz de apostar que tinhas... - levantei um pouco a mão direita na direcção dela - talvez dentro da tua mala.
Ela sorriu, enquanto olhava durante alguns instantes para o chão. Consegui ouvir uma respiração mais forte e ritmada aquando do sorriso.
-Não me parece uma grande aposta. - disse ela - Não há grande risco numa aposta dessas, terias pouco lucro.
-Mas há boas hipóteses de ganhar.
Sorriu de novo.
-Sim, nisso tens razão. È até uma lógica interessante, segura. Há algumas assim. Mas queres saber se ganhaste ou vais continuar o espectaculo?
-Mas apetecia-te dizer já, era?
Caminhou na minha direcção, passos lentos.
-Um pouco. - Disse-me ao chegar perto. Baixou os olhos por um instante, raspava o sapato na calçada. Levantou a cara e vi-lhe um sorriso escondido. Os olhos, ligeiramente escondidos no cabelo, procuravam a minha cara. Eu, sem a perceber, sorria.
-Mas é que preferia descobrir depois... - e o meu sorriso, por instinto, abriu-se.
-Medo de alguma coisa?
-Não, nada disso. È que esses óculos interessam-me muito.
-Bem me parecia.
Os seus olhos estavam novamente fixos nos meus, uns olhos tristes. O meu sorriso tinha-se apagado.

3 comentários:

Á disse...

Já li o encontro | e acabei agora de ler o encontro ||, e estou cada vez mais curiosa para ver como esta grande história vai acabar :D
Sinto-me completamente envolvida na história. Esse é o grande poder que os teus textos têm.

Já sentiste isso? Ires para algum lado com os teus amigos, passas lá algum tempo que na tua noção de tempo passou mesmo pouco, descobres uma nova faceta, muito boa e só envolvida de sentimentos aos quais te deixam completamente leve de tudo, principalmente de ti? Chegas a tua cidade novamente e parece que o tempo que tiveste fora a tua cidade nada mudou. Continua o sentimento de vazio, de depressão, de stress, já sentiste isso? É voltares do mais belo dos teus sonhos e aterrares com a cara na realidade e no dia-a-dia da sociedade. Acho que divaguei um bocadinho xDD
Bem, de qualquer maneira, obrigada já vi que me estas a seguir e parabéns pela tua criativadade :)

Á disse...

Eu só escrevi o segundo comentário porque disse que não tinha ficado guardado. Fiquei um pouco fula xDD Afinal...

Isto há-de ir ao sitio. A sensação pode voltar ou não, mas decerteza que não será numa cidade cheia de movimento e correrias constantes. Muito dificilmente encontras paz de espito aí. O agradecimento fica na mesma :D

MafaldaMacedo disse...

quero mais, Nuno.