Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


terça-feira, 22 de junho de 2010

(...)


Os pés sentiam calçadas, asfalto, escadas algumas vezes. Um passeio por ruas onde poucos carros se cruzam, e, quando o fazem, enchem o caminho por completo. Em redor, apenas o barulho de algumas janelas a abrir, de passos a fazerem eco fazendo tomar noção de sítios ao lado, alguns estabelecimentos abertos, outras pessoas que passavam e depressa se escapavam noutro emaranhado de becos qualquer.
-Não andamos em voltas? Isto é tudo igual, ruazitas pequenas a subir ou descer... Tenho a sensação de já aqui ter passado.
-Acho que não. - levantou a cara, deixando o olhar prosseguir até onde podia - Pelo menos não me parece. Andamos mais um pouco e depois vê-se, tenho a certeza que não devemos estar longe.
-Mas ao menos conheces a zona? Sabes mesmo onde isso fica?
-Sei, sei. Como te disse, perguntei-lhe ontem, é só subir ali. E já passei aqui algumas vezes.
Os seus passos tornavam-se rápidos em comparação com os dela. Tentava andar mais devagar, a olhar para o que o rodeava, como à procura de uma indicação qualquer. Virou-se para ela:
-Queres parar um pouco? Queres ir a um café?
-Não, não, não é preciso. Porquê?
-Está calor… - para um pouco -, podias querer beber qualquer coisa.
-Agora não tenho sede.
A rua em que seguiam estreitava em poucos metros, ficando practicamente entregue a casas e passando de mero asfalto a escadas de calçada. No cimo, olhando de relance, viu-se passar um carro. Ele virou-se rapidamente para ela.
-Estamos quase. Aposto que dali já se vê.
-A sério?
-Sim. Estamos perto, anda.
Continuaram mais um pouco, até ele reparar que a deixava novamente para trás e que agora tinha na cara uma expressão de incómodo. Ele parou a olhar para ela.
-Dói-me o pé. - disse-lhe.
-Dói-te o pé?
-Sim. Não sei, é mais ou menos aqui. - e abaixou-se indicando onde a zona, aumentado a cara de dor.
-E agora? - voltou momentaneamente a cara em direcção ao topo das escadas, deixando cair o braço.
-Não sei... parece-me ser um dedo qualquer...
-Doí-te muito? Queres parar?
-Sim... um pouco.
Sentou-se no passeio, apoiada na parede de uma casa e no ombro dele. Ele fez o mesmo, tocando-lhe em seguida ao de leve no pé. Ela mexia na mala, que estava ao lado das pernas cruzadas. Tirou a máquina, e tinha-a agora segura, à frente dos ombros, pronta para disparar enquanto olhava em volta, à procura duma imagem. Ele seguia-lhe os olhos.
Um miúdo passou a correr, vindo do nada, com outro a surgir de seguida do mesmo local, parecendo que quase a cair. Os dois faziam uma espécie de grito que se misturava com sorrisos e ficou como eco entre os prédios até desaparecerem atrás de um. Um homem veio à porta dum café a bater com os pés e bracejando enquanto lhes gritava, por momentos cochichou qualquer coisa para dentro sem de lá receber sinal, acabou por olhar para cima e ver uma mulher apoiada à janela, os dois abanaram a cabeça e trocaram meia dúzia de palavras, olhou de novo para o sítio onde deixou de os ver e acabou por entrar. Ela fotografou as suas pernas enquanto corriam, no instante em que o primeiro já se preparava para virar. Os risos perdiam força à medida que se enfiavam cada vez mais no resto da cidade.
-Apanhaste-os?
-Sim, mas a foto ficou mal.
-Deixa ver. - e chegou-se mais perto, olhando para a câmara.
-Já apaguei. Não valia a pena deixar.
-Gosto daquela casa - apontou - é um bocado antiga mas parece ter qualquer coisa, não sei dizer o quê.
-Hum... não gosto muito. A fachada não me parece nada demais, nada nas varandas... achas que vive lá alguém? - os cabelos taparam-lhe a face quando se virou para ele.
-Não sei, talvez. Pelo menos eu acho não me importaria muito. Parecem ser umas paredes com mais que tijolo e cimento. - Chegou-se para trás, levantando o braço direito e deixando a mão suspensa no ar, frente à boca que parecia dizer alguma coisa. Os olhos ficaram mais pequenos, com o cabelo a cair pela testa. Os joelhos estavam levantados, sobre as pernas cruzadas.
Enquanto isso, a câmara estava agora caída sobre as pernas dela, com as mãos por cima; os olhos estavam baixos. O vento fez uma janela abrir ligeiramente a voltar atrás num instante a seguir, levando consigo o ar que tinha apanhado e movendo o resto do que foi uma cortina. Os olhos dele voltaram a pestanejar, repetindo o gesto muitas vezes, até que abanou ligeiramente a cabeça fechando-os um pouco. Reparou como ela estava, e tocou-lhe a mão, massajando-a lentamente, olhando-a sem que ela se movesse. Levantou por instantes a mão para lhe retirar a câmara, que olhava agora como se quisesse recordar como funcionava; esteve assim alguns uns segundos. As mãos mantinham-se juntas, até ele segurar na máquina e, inclinando-se um pouco para trás, tirar-lhe uma fotografia. Quando baixou um pouco a máquina, destapando a cara, ela reparou que sorria.
-Não gosto que me tires fotos assim. Fico com um ar de parva.
-Então estas podem ficar para contrastar com todas as outras que tiras. - disse, sorrindo. Ela virou-se para a sua frente, escondendo com os cabelos o sorriso que se notou pelo barulho diferente da respiração. Voltou-se de novo, a disfarçar um pouco o sorriso. Ele tinha a cara apoiada na palma da mão. Olhavam um para o outro. Na casa janela abria e fechava.
-Vamos? - perguntou, um pouco depois, ainda na mesma posição.
-Sim, - respondeu mantendo o sorriso, e ligeiramente subindo o seu rosto - já estou um pouco melhor.
Ele levantou-se de pronto e, olhando-a, estendeu a mão, ajudando-a a subir. Sorriram um ao outro quando retomaram a caminhada, conversando e virando-se constantemente um para o outro. A máquina estava segura no ombro, e ia fazendo um barulho de quando em quando ao deslizar pela roupa.






Na parte final deste conto, enquanto o escrevia e, entre outras coisas, lembrei-me deste filme, e de imagens como esta:

3 comentários:

MafaldaMacedo disse...

Oh Nuno, mais jeito para isto é dificil! Está excelente, adoro a tua visão das coisas.

E olha, tu és mesmo safadinho! Então agora descais-te todo alí, pronto a meter-me em problemas? :p hahaha estou lixada contigo

pecado original disse...

O rapaz gosta tanto dela que é um pecado ela fazer-se de difícil.
:)

Continuas a merecer palmas.

Rita Silva Avelar disse...

vai demorar um pouco para recuperar a minha ausência daqui. *