Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

A Eternidade Só - Parte I

-Se fosses condenado a passar a eternidade sozinho, e pudesses escolher como a passar, onde seria?
-Não sei bem.
-Tenta.
-Está bem. Se pudesse escolher deveria ser numa sala grande, tipo armazém. Os metros não me interessavam, porquê limitar um local onde nunca mais sairemos com os nossos preciosismos?
-E porquê aí?
-Não sei. Mas talvez se estivesse num sítio pequeno podia sentir mais vazio pela proximidade das minhas fronteiras.
(fez uma pausa)
Queria também as paredes caiadas, todos os anos, e era eu que fazia isso. Deixavam já cal suficiente. O chão era em filas de pequenas tábuas, por envernizar; de castanho claro. Com pequenas ondas de tom mais escuro.
Havia sempre luz a entrar por uma única janela, isso, só queria uma janela. E bem lá no alto, para que nem chegasse a ter o desejo de espreitar lá para fora. E mesmo de noite tinha de haver luz a entrar. A luz que vêm duma fogueira. Para que pudesse reflectir numa das paredes todos os jogos de sombras que são naturais das chamas. Como uma espécie de dança ao jeito do fogo. Seriam como quadros sempre prontos a pintar, mudando a cada segundo e embora já sabendo o que iria ver, ficaria sempre surpreendido. Um quadro sem qualquer vestígio na manhã seguinte.
De dia era o Sol. Entrava para iluminar o pó que caía como se fosse uma ampulheta mas sem a particularidade de a poder virar.
(voltou a parar, olhando agora para todo o lado como pedindo às coisas resposta para a sua imaginação)
-Continua.
-Já sei. O tecto, o quanto me deliciaria com um tecto assim. Seria um espelho para reflectir tudo o que perpendicularmente via, mas agora noutra perspectiva. Ainda tenho de pensar se seria melhor um côncavo, como se a realidade se aglutinasse toda num mesmo ponto. Bem, mas continuando. O espelho servia até para nunca me esquecer que continua a existir um outro mundo, que só acaba quando suceder o mesmo ao meu. Da mesma maneira que duas linhas podem ser infinitamente paralelas. Um toque rigoroso da Matemática para suster o meu mundo. Ah, e nessa sala, não podia haver portas.
-Porquê?
-Teria medo que alguém pudesse entrar. Assim seria como se não estivesse realmente sozinho. Havia sempre uma possibilidade.
-E não havia mais nada nessa sala?
-Sim, agora que me falas nisso. Tinha de arranjar algumas odaliscas de Matisse, seriam como que as janelas que não tinha. E também uma guitarra acústica.
-Mas tu nem tocar sabes.
-Não te preocupes, havia tempo suficiente para aprender.
(voltou a parar um pouco, agora revigorava os olhos como que à procura de alguma coisa no passado)
-Agora me lembro. Tinha de haver também uma folha branca presa por uma caneta sem tampa.
-O porquê de não ter tampa?
-Apesar de haver pouco espaço, tinha medo de a perder. Assim não seria uma caneta sem tampa. Mas uma caneta sem a tampa que eu perdi. Ficava diferente.
-Ias escrever uma espécie de diário?
-Não, não iria escrever nada.
-Nada!? Então para quê isso?
-Essencialmente para relembrar o meu passado. Para me lembrar que é com palavras que se pensa e nunca perder esse hábito, mas apenas mentalmente. Pois se escrevesse, seria como se estivesse a alterá-lo e o que realmente passei nunca tivesse chegado a existir. Além disso, tinha medo de um dia encher a folha e não haver mais espaço para o que quero escrever.
-Assim o papel passava a exercer um poder sobre ti.
-Como assim?
-Tinhas a vontade de escrever mas sabes que não o podias fazer, seria como algo imaculado que nunca podias mudar e tinhas de enfrentar sempre.
-Talvez. Mas continuo a prefirir a folha. Também é preciso um certo controlo.
-Mas só te referes a coisas físicas?
-Nunca estive assim, tudo o que dissesse podia ser ainda mais mentira que o que até agora te contei. Ou pior, e isso é que me assusta mesmo. Talvez mais verdade e nós sem saber.
-Sim, é melhor assim desse jeito.

8 comentários:

U disse...

«Essencialmente para relembrar o meu passado. Para me lembrar que é com palavras que se pensa e nunca perder esse hábito, mas apenas mentalmente. Pois se escrevesse, seria como se estivesse a alterá-lo e o que realmente passei nunca tivesse chegado a existir. Além disso, tinha medo de um dia encher a folha e não haver mais espaço para o que quero escrever.»
Ora aqui está algo que me acontece muitas vezes ao dia. Para opinar o texto, vou ter que o ler mais umas três vezes, com muita atenção. Mas à primeira impressão, gostei muito. (para não variar..) *

Unknown disse...

ficcionado, mas com muito do teu eu, com certeza! gosto muito da tua forma de escrever. aguardo a próxima parte *

Á disse...

:) Agradeço-te. Tu estas de Parabéns em cada texto que escreves. Pois, como sempre que venho ao teu blog, muitas pessoas partilham a mesma opinião do que eu. (Pudera)
Gostei do teu texto.

maria miguel disse...

para não sair da magnifica rotina que este blog me dá, escreveste mais um texto fantástico. adorei cada palavra e cada justificação que deste para cada pergunta. mais original seria impossivel.

U disse...

Vou voltar a escrever, sim, mas não deixo de cá vir ler! Aquilo que disseste sobre mim, aplica-se (igualmente) a ti. (:

Unknown disse...

Obrigada! Tudo na vida tem dois lados e nós vivemos sempre entre o sonho e a realidade, entre o que queremos ver e a relidade,entre o que os outros nos querer dar e o que podem na realidade...sou uma descrente no «para sempre» mas apeteceu-me sair de mim e por hoje acreditar ficcionalmente :)

David Pimenta disse...

Achei fantástico este texto. As melhores respostas que se podiam ter dado ;)
fico à espera da segunda parte.
:)

Rita Silva Avelar disse...

Interessante. Gostei.. (para breve a segunda parte sff :P)