Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


sexta-feira, 10 de agosto de 2012

os dedos questionam o tampo da mesa
embora do tampo da mesa, tirando o dedilhar
a outra mão parte à descoberta de formas, ou talvez seduzida por elas
uma caneta que se torna intermitente
entre o estado de escrever após um simples carregar
e um estado em que recolhida tirando uso da mesma função
e observa-se, ainda, o tamanho e espessura da folha
como se o tamanho e a espessura da folha mentira
enquanto se dá o teste relativo à resistência capilar
o reconhecimento da face, os seus contornos, algo por dizer
que não é dito, nenhuma resposta qualquer indicação

surge o som da cigarra entre pensamentos perdidos
próprio da altura do ano, e da noite
com a particularidade de dar azo à imagem de eu lá fora
porventura fumando se fumasse, sentado
inquirindo buracos no chão gastando a sola
chegando grãos de terra a desfazerem-se aos meus ouvidos
atirando sem consciência de tal
o máximo de pedras que me fosse possível
até que do braço voltar a dar conta
finalmente obrigado a refugiar-me na paisagem
que decerto não distinguiria, ou teria dificuldade
caso não se trata-se de uma noite límpida
em que os contornos me fossem mais definidos
e aí me deixasse enlevar pelo jogo de cores
em oposição às repetidas em luz do dia

saído daí, o desejo foge-me para o rasgar da folha
sem que a folha culpa alguma, era capaz de jurar que sem culpa alguma
da inspiração ofegante que me invade os pulmões
trazendo na bagagem elementos e propriedades do ar
(ainda que sem poder contar com a nicotina)
detentores da capacidade de me fazer tomar consciência
de outros contornos até aí desconhecidos
artérias que se alongam, dolorosamente flexíveis
noutros recantos, não esquecer, joelhos que quebram sem estalar
ou de outro lado, a folha em si esmagada pela minha mão
num processo de reconhecimento da rugosidade na parede
e que vê ganhar novos tons vermelhos, tingida a pouco e pouco
numa velocidade constante, e que revela a principal vantagem
de a tornar mais maleável, ainda que, contudo, nada disto torne mais nítidas
as palavras com as quais me queria deparar
supondo eu que me queria deparar com algumas em concreto

não param, ainda, os passos em volta, traçando rotas
em direcção a lugar nenhum, dados por nenhuma outra razão
que não seja a da impossibilidade de me manter fixo, imóvel
circunscrito a uma coordenada cujo sistema de referência
deveria ser definido por mim, mas que me insiste em negar
a projecção devida, isto dando fé nas gotas que tocam o chão, lentamente
uma a uma e que não tardam a secar, inscrevendo-se nele, fazendo parte dele
talvez pisando eu algumas, outras levando comigo transformando-as em marcas
devido a pegadas que deixo e posteriormente recordarei ao limpar
isto caso à limpeza me dedique, supondo que durarei suficiente tempo
para a algo me dedicar

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