Os cabelos caíam-lhe como se estivessem destinados a formar uma muralha entre o resto do mundo e a sua face, esta alongava-se pelos olhos até a um livro que segurava com a mão esquerda. E foi isso que me intrigou principalmente, o livro, tinha sido escrito por mim.
Era num espaço em frente à biblioteca. As pessoas podiam ir buscar um livro e vir cá fora ler, junto a pequenas mesas que não tinham mais do que 2 cadeiras em redor. Pareciam pequenas ilhas. 2 casas acima havia uma esplanada que inundava o ar com as conversas que se escondem entre risos, como se fossem uma língua própria e impercebível para quem está longe. Mulheres passavam na sua nervosa dança sedutora – era sábado, às 3 da manhã -, os homens tinham ou como destino ou como ponto de partida o bar, geralmente ainda com um copo de plástico na mão, seguiam num misterioso murmúrio:
-Não, não. Aquela é que era mesmo boa.
A minha leitura não era muito atenta, já nem me lembro do que estava a ler. O que me interessava principalmente era quem se sentava comigo, absorta na leitura do meu livro. Tentava procurar manifestações que ela pudesse ter e relacionar isso com a parte do livro em que estivesse.
Da esplanada surgia um eco maior, alguém havia chegado e não me era estranho. Passei a ligar a uma idosa que se debruçava sobre o postigo, mesmo em frente ao café, e o observava atentamente. Todo o seu rosto transparecia um misto de nostalgia e admiração. Talvez o seu problema não fosse a insónia mas sim a solidão.
A cada minuto que passava sentia-me como num sítio diferente. Como se fossemos dois seres invisíveis aos olhos de quem passava, alguém que está longe das regras e vai contra um certo código que manda sentar em cada esplanada que se encontre. Sentia-me dono duma liberdade diferente, algo que ganhei não pelo que fazia, mas precisamente pelo que deixava de fazer. Tal como era aquela idosa perdida no jogo do tempo e que consciente disso olhava agora para a Lua, como uma referência. Um ponto que garante a existência de algo transcendente.
Acho que nesse momento, mesmo que quisesse, não seria capaz de me levantar da cadeira. Era como uma força que obrigava a nada fazer até atingir um ponto que passávamos a estar de tal forma enlevados pelo que nos rodeava que só depois de o termos atingindo, seria possível sair.
De repente, ela deixou cair umas gotas que lhe tornavam o rosto ainda mais enigmático. Olhei para o livro e reconheci a parte. «Bem me parecia ser um pouco dramático, mas eu também não sou coração mole», pensei. Levou a mão esquerda à face e enxugou as lágrimas, deu um toque no cabelo num acto que lhe dava ainda maior graciosidade e continuou a ler.
Enquanto isto, alguém esmiuçava parecenças sobre o efeito do álcool:
-Tu não és aquele da televisão que agora se me esquece o nome?
Interceptando-o com o indicador e piscando involuntariamente o olho. Levantei-me para ir procurar outro livro. Quando regressei, o outro, num igual estado, procurava-lhe incessantemente:
-Quem? Quem?
Reparei ainda num homem que se sentava sozinho e decidiu mudar-se para outra mesa, já era segunda vez que o fazia. O nosso amigo continuava com a sua inquietação:
-Já vi essa cara em algum lado.
P.S: Voltei basicamente pelo mesmo motivo que fui: puro instinto. (ou talvez vontade de partilhar)Não prometo posts diários, longe disso. Mas umas coisas de vez em quando.
9 comentários:
Sentia-me dono duma liberdade diferente, algo que ganhei não pelo que fazia, mas precisamente pelo que deixava de fazer.
nâo deixes de escrever aqui - a liberdade de te poder ler é algo tão gratificante (e viciante, vá) que dá gosto.
Candeeiro porquê Nuno? Se há I haverá II e III, não é? :p
Lindo.
Fico à espera de o poder ler, ao segundo capítulo :p
(tu és bom - deixas sempre aquela duvidazinha, HMMM - tiro-te o chapéu :p)
voltaste :O
Optimo! Obrigada :D
Muito bom, como sempre ;)
Beijinho *
Vou divertir-me de certeza :D (a)
*
faço minhas as palavras da Joana :D
gostei do texto, volta mais vezes *
Quando apanho um susto abro muito os olhos!
Uma pergunta, o livro de que falas aí é o que vês no momento, certo?
A palavra liberdade toca-me sempre. Adorei, um bonito retrato de realidade. *
quero o Candeeiro II, Nunooo! :D
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