Sentei-me sem ela esboçar o menor gesto, estava prestes a acabar o livro. Olhei para a luz que vinha do candeeiro e senti-me um mero objecto. A luz ia moldando sombras com a ajuda da Lua ou outro carro que passava. Dum momento para o outro podia correr toda a rua mesmo estando sentado, tudo através da minha sombra que seguia com o pensamento. Como se ao existir algo de real ali, não fosse mais do que o meu reflexo apagado, movendo-se contra a minha vontade lógica, mas empurrada pelo meu espirito. Tudo numa sucessão de pequenos momentos, pequenos recortes que me faziam ir à memória e buscar certos sons que embora parecessem dotados dum outro timbre, quase afónicos, ouvia-os bem na minha inquietação. E tudo seguia segundo essa banda sonora, orquestrada pelo candeeiro. Tudo isto até que uma voz me acordou:
-Era capaz de matar este escritor.
À qual fui incapaz de responder, não mais do que um simples abalo. E regressei lentamente a esse estado como se a noite fosse ganhando cores e outras dimensões, com características próprias e impossíveis de se interligar. Dum momento para o outro estava num filme, em que a cena se desenrolava junto a esse candeeiro intermitindo entre o preto e branco, nos momentos mais introspectivos; apenas uma súbita junção de cores em que eram permitidas legendas:
-È incapaz dum final feliz, estava mesmo capaz de o matar.
Com isto acabei por acordar, a realidade ia aos poucos voltando como se fosse uma bebida que é preciso saborear, dei um sorriso para dentro e respondi-lhe:
-Espero bem que não faça isso.
-Não, mas era o que merecia. Uma pessoa apega-se tanto a uma personagem e não merece que ela morra no final da história.
Fez uma pequena pausa, olhava agora para o livro como um simples objecto, algo a quem já tinha sido tirado tudo. E foi aí que observei pela primeira vez a beleza dos seus olhos verdes. Adorei o vestido que trazia e a forma como lhe moldava o corpo, sem nunca ser justo. Encobria as formas, o que dava mais realce ao seu olhar penetrante. Um que nunca deixa transluzir o que se está a pensar. Por isso me senti nervoso quando senti necessidade de me explicar
-Desculpe, podia olhar para a contracapa.
-Deve achar que sou maluca ao falar-lhe disto.
-Não, não. Muito pelo contrário. Talvez vá é pensar isso de mim.
Olhou para mim com uma certa hesitação e depois virou o livro, nem consigo descrever o espanto que ela sentiu quando viu que esteve a ler o meu livro, ao meu lado, sem o saber.
O homem da esplanada voltou a levantar-se da sua mesa e dirigiu-se à dos nossos dois amigos:
-Você é aquele homem da televisão, não é?
Enquanto isso:
-Mas, meu Deus… È você!
Olhou para como se tivesse encontrado um fantasma, no outro lado:
-È o que lhe tenho andado a dizer.
-Mas quem? Quem?
-Não sei, mas você parece-se mesmo como ele.
E continuavam nisto quando eu me decidi responder algo que depois me arrependi por parecer tão despropositado:
-Há quem diga que o enlevo do silêncio só merece ser apagado pela beleza da música. Por isso deixei-a ler enquanto procurava a reacção mais natural a um livro meu.
Surgiram de novo ecos da esplanada, era outra vez o nosso amigo a mudar de cadeiras, o que a faz olhar para lá pela primeira vez:
-Olha, não é o baixista dos Titãs?
-Onde?
-Ali – apontando – ao lado do apresentador da Rock TV.
3 comentários:
Há quem diga que o enlevo do silêncio só merece ser apagado pela beleza da música. - frase linda :)
quanto ao meu texto, repito: não acho grande coisa, foi só mesmo para postar.
quanto ao de quinta, não cries grande expectativas porque ninguém vai perceber o post. só mesmo a pessoa para que ele se dirige.
um beijinho nuno :) *
Parece uma cena de filme, continuo a achar que o teu livro é o que tu vês, mas desta vez é o que fazes também. Quero ler a continuação, quero quero :p
OH nuno, está ainda mais bonito que o primeiro :)
há um terceiro?
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