Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


sexta-feira, 10 de julho de 2009

Um conto de... Amor?

Era de noite. Havia um festa para a qual tinham sido convidados, mas agora já estavam no hotel. Durante o início da tarde tinha chuvido, agora já não. Apenas abafado. Estavam num dos quartos do hotel.
-És um estúpido. Depois de tudo o que passamos não és capaz de dizer mais, de dar mais?
Ela estava virada contra a janela, via o reflexo do quarto. Ele tinha a cabeça baixa e ia-se vestindo.
-Eu devia ter dado ouvidos às minhas amigas, bem me avisaram. "Olha que ele isto, olha que ele aquilo". E eu sabia-o bem, o pior é que sabia. Mas eu estava cega. Meu Deus como estava cega!
Ela via-o a vestir a camisa, deixou a cabeça inclinar-se até bater no vidro. Os cabelos prendiam-se contra a janela, embora continuasse a cair.
-As únicas pessoas que conheces são os meus amigos, é bem feita voltares para a tua vida miserável. Podes ter a certeza que lhes vou contar e nunca mais te falam, ou pensas que gostavam de ti? Se soubesses o que ouvi deles. Escondes-te no trabalho e julgas-te importante. Não sabes falar de nada interessante.
Ela deu uns passos atrás e dava pequenos murros na janela. Ele procurava os sapatos.
-Isso, vai-te embora que é o que sabes fazer. Não és capaz de enfrentar nada, nunca o fizeste. Tiveste problemas, é verdade que tiveste muitos problemas, mas faz como as pessoas normais e enfrenta-os. Nem comigo foste capaz de falar deles, e Deus sabe como tentei.
Virou-se e olhou para ele, viu-o ainda sentado.
-Achas que os outros não os têm!? Achas mesmo isso? Só podes achar! Agora vejo bem, só falavas dos meus para me enganar, para me usar. Como podem existir pessoas assim? Tu deves ser um excepção qualquer, um bicho. Pois ouve bem, os teus problemas, se é que os tens, não interessam a ninguém! Devias era ter ficado a apodrecer na terrinha de onde vêns.
Ela começou a chorar e virou-se novamente. Ele olhava o nó que dava nos sapatos, e falou.
-Acabaste? - Levou as mãos à cabeça e esfregou os cabelos. - Peço desculpa se não te dei atenção suficiente, desculpa também por ser quem sou, mas não tenho paciência para isto. O melhor é acabar.
Levantou-se e caminhava para a saída.
-Por favor, espera! - disse ela, voltando-se ao mesmo tempo.
Ele parou à frente da porta, e sem se virar respondeu:
-Desculpa se por vezes não entendo ou fingo que não entendo os sinais, talvez não te levei a sério ou sou assim, não sei. Deste muito mais do que eu, respeito-te e acho-te incrível, mas eu não dou mais que isto, mereces melhor. Tenta é ser mais paciente.
Saiu do quarto sem dizer mais. Desceu de elevador e à saída do hotel encontrou um casal amigo que vinha da festa, cumprimento-os. Contaram-lhe que um homem tinha acabado por ir ao hospital, haviam-lhe dado com uma garrafa na cabeça, não era nada de muito grave e bastava saturar, embora tivesse saído apoiado em ombros. "Bêbados", soltou já a despedir-se. "Foi uma maluca qualquer", disse a mulher, já de costas, prestes a entrar no elevador.

Assim que passou a porta, encontrou uma mulher de cabelos pretos, sentada no canteiro das flores. Ela usava um vestido cheio de cores vivas, até aos joelhos. Reparara ainda na maquilhagem, borratada nos olhos. Não parava de levar à boca a garrafa que tinha na mão, e falava sozinha, ao mesmo tempo que gesticulava com um amigo imaginário. Passou a correr, na direcção do carro, e foi aí que a ouviu.
-Hey! Look who he is, the love of my life. Come on and have a drink. As estrelas, estão incríveis esta noite, não acha? A maneira como fogem quando as tento agarrar...
Ele virou-se e não conseguiu esconder um pequeno sorriso. Quando passou, já a tinha considerado bonita, agora achava-a interessante.
-Ia só chamar o empregado, não tarda trazia aí o meu cavalo branco.
-Ah!... um cómico. Come and join me in my misery. Podia ajudar-me a contá-las, ou têm mais alguma na manga? È que, agora que reparo, parece-me um pouco descuidado. Esqueceu-se das rosas. Como é possível esquecer-se das rosas!?
-Eu pensava que estavam fora de moda e quis surpreender.
-Nunca! As rosas ficam sempre bem. Pelo menos é como vêm nos filmes. Mas sente-se, por favor. Temos de fazer o primeiro take.
Sentou-se devagar a seu lado.
-Deixe-me começar. Vamos saltar aqueles capítulos onde nos apresentamos e trocamos cigarros, e esqueça também as estrelas e essas tretas. Gosto é daquela parte em que me diz o quão boa é vida e as suas oportunidades. Se por acaso eu discordar, dar-me-ia exemplos. Eu devia continuar e entrava com toda a força e abria-me por completo, aí é quando relembrar-me-ia que os homens são assim mesmo. È assim não é?
-Não sei se entendo muito bem este filme, mas acho que podia acontecer. E, para manter a neutralidade, talvez uns pequenos "reparos" nas mulheres. Parece que, na sua maioria, são exigentes e inseguras. È o que vêm no guião.
Bebericou um pouco, e olhava para as estrelas, devagar. Ele enrolava as mãos.
-Para que foi isso das mulheres? Têm de seguir o guião. Mas, continuando, e veja se aprenda, eu acabo por soltar um sorriso e, se houver momento para um beijo, o senhor afasta a cara pois é um gentleman, seria mau tendo em conta a minha actual fragilidade. Aí ficarei um pouco triste, recrimino-me, e talvez até chore. Para me consolar, irá lembrar-me a quão fantástica sou. Ou, quem sabe, talvez não acabemos mesmo num encontro, num outro dia. Ou então podemos mesmo começar por um beijo. Não tem frio?
-Acontece mais vezes, o encontro, acho eu. Talvez numa noite de chuva, com um de nós a chegar atrasado, talvez eu, e a aparecer mesmo no momento em que o outro se preparava para ir embora.
-Quem sabe, ultimamente não tenho assistido a muitos filmes com final feliz. Generalizar é tão engraçado, não é? Tão idílico. Aquele cabr.. ah! Mas bem, prefiro não me esconder, não lhe posso dar esse gosto.
-Então porque é que está aqui?
-Não é ninguém para julgar-me! Isso nem vêm no argumento! Pelo menos não no que li, ou quer negociar já a rescição do contrato? Não me parece que possamos ser do mesmo elenco. Mas será que uma mulher não pode, pura e simplesmente, escolher um ambiente mais sossegado, saborear esta bela ocasião e, se bem lhe apetecer, e apenas para apimentar a questão, embebedar-se? A mim parece-me perfeitamente normal.
-Pode, e sou muito a favor de misturar bebidas com ambientes sossegados.
Ela bebeu mais um pouco e largou a garrafa no muro, balançava as pernas. Passaram umas amigas da ex-namorada, olharvam muito sérias para ele. Ainda se ouviu um barulho qualquer quando entravam, mas já não deu para perceber.
-Olhe, sabe o que vai fazer? Nada. E é o que faz melhor, digo-lhe já. Chegue-se apenas perto de mim. Vai ficar a noite toda ao relento enquanto adormeço, agarrada ao seu ombro. - Olhou para ele uns momentos. - De que espera? Tire o casaco, ou acha que não tenho frio?
Ele tirou o casaco e vestiu-lho. Ela fechou os olhos e deitou a cabeça no ombro.
-Agora, que já se acalmou, e se me fizer o favor, explique-me. Acha que é errado partir uma garrafa de cerveja, na cabeça de alguém, que por limitação cerebral, é incapaz de resistir aos encantos da empregada do bar?
-Bem...Aonde foi mesmo que acertou?
Ela deu umas voltas com a cabeça, até arranjar uma melhor posição.
-Aqui mesmo. - E com o dedo apontou o sítio na cabeça dele.
-Pode passar-me essa garrafa, estou com um pouco de sede.
Estava em cima do muro, não abriu os olhos, encontrou-a a apalpar.
-Obrigado - Passou a garrafa para o seu lado. - Se é errado? Bem, acho que só se falhou.
-È exactamente isso que penso! Definitivamente, não percebo as pessoas.
Ficaram a falar até ao raiar do dia, tal como estavam, sem grandes assuntos. Levantaram-se quando um empregado do hotel lhes foi perguntar o que estavam ali a fazer. Nunca mais se viram, nem os nomes um do outro chegaram a trocar. Quando se despedia, acabou por oferecer-lhe o casaco, sem saber muito bem porquê. Ela aceitou sem dizer nada, ficou apenas um bocado a olhar-lhe nos olhos. No trabalho, ele têm-se atrasado um pouco a entregar os projectos, os colegas já repararam, e começou a beber demais.

4 comentários:

Joana M. disse...

Era este não era Nuno?
Ainda não o li mas vim cá dizer-te que não me esqueci e que gostei muito de saber que te importa o que vou achar, assim que leia.
Estou a um exame nacional de me ver em férias - e é já amanhã - e depois venho ler-te atentamente e comentar-te cuidadosamente, prometo.

Acho que mereces uma atenção que hoje não te consigo dar (ou a ninguem) porque ando com a neura da Biologia.
Ainda assim, fica o beijinho de até já!

'stracci disse...

A 1.ª opção é sempre a Nova, a minha também foi. Felizmente, no meu caso, entrei na 2.ª. xD
Vais conhecer pessoas muito «interessantes» por lá e ainda nos vamos cruzar, numa das minhas visitas esporádicas. :P

'stracci disse...

Digamos que a minha será a eterna segunda escolha. A FCSH tem um nome e um prestígio muito acima do singelo ISCSP. Olha, mas posso saber porque tens essa ideia do ambiente? É que eu tenho uma ideia completamente contrária. :/

Joana M. disse...

Vim ler, agora com atenção e tempo, como prometido.

"-Obrigado - Passou a garrafa para o seu lado. - Se é errado? Bem, acho que só se falhou." ADOREI.
Se calhar está um pouco longo o ínicio, a discussão entre os dois, a partir daí é simplesmente FASCINANTE ler as ideias do encontro, do beijo, das mulheres, do ficar triste e ele enunciar como ela é fantástica. O casaco, o beber mais. São pormenores que dizem muito da história - gostei muito, Nuno. A crítica não poderia ser senão positiva! :o

Dizes não perceber de mulheres, teres pouca fé e não acreditares que se preencha o espaço que uma vez alguém ocupou porque a amaste. Julgo que te enganas. Redondamente.