Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


quarta-feira, 22 de julho de 2009

Menina da praia



Andava a correr pela praia quando ouvi a minha mãe chamar. Virei-me para os meus amigos e disse que já vinha. Segui a correr até ela, quando cheguei perguntou-me que fazia eu sempre a correr, abri os braços e nada respondi, ela começou a andar e eu segui atrás dela, a olhar os seus pés. Entrei em casa e aí estava a minha avó, como sempre, deitada na cama.
Desde que o meu pai partiu nos barcos para um sítio que chamam a Espanha, ela ficou pior, costumava passar os dias a falar com ele, eu também. Quando ele não tinha de ir pescar, levava-me às escondidas no barco para me mostrar os peixes. Eu gostava muito de deixar uma mão na água, fazia uma espécie dum corte e ia uma onda para cada lado, pequenina e rápida, sempre a correr atrás do barco. Um amigo disse-me que lá na Espanha arranjam mais peixe e outras coisas, deve ser por isso que ele foi. Quando ele foi embora, eu estava na praia com a minha mãe, ela estava com os olhados molhados. Eu ainda pensei que era um salpico do mar, mas quando chegamos a casa sentou-se a um canto e os olhos continuavam na mesma.
Perguntei a um amigo aonde ficava essa Espanha, ele disse-me que até lá chegar era preciso dar 2 vezes a volta ao mundo, beber muita água do mar porque às vezes entra no barco e pode fazer cair, e mesmo assim não é certo lá chegar, há muitos caminhos e podem-se enganar. Quando se chega, não é como aqui que há areia e podemos correr uns atrás dos outros, vê-se pedras muito grandes a esconder o céu, por mais que a água lhes bata, nunca saem dali. Têm de se agarrar muito bem a elas, pois é preciso subi-las, só com as mãos e as pernas, ele disse-me que a isso se chama escalar. Disse-me ainda que lá, a Espanha, é tão grande, que as pessoas podem acabar por se perder e não voltar mais. E era para chegar duma ponta à outra, é preciso andar a vida toda a caminhar, e mesmo assim pode não chegar. Por isso é que, quando eles querem voltar, não conseguem encontrar a mesma água.
Eu olhava para a minha avó quando a minha mãe me deu este alguidar, mandou-me ir buscar água. Como tinha medo que o partisse a correr, obrigou-me a calçar os chinelos, eu não gosto nada - o meu pai nunca mos obrigou a usar. Voltei à praia, esperei pela primeira onda, - gosto muito da água a bater nas pernas - e enchi logo. Passei pelos meus amigos, olhei para eles mas não me disseram nada, nem ouvi o que diziam, mas eles seguiam-me com o olhar. Tinha os chinelos molhados e colavam-se nos pés, não gosto nada disso e tive de os tirar, se não fizer barulho pode ser que a minha mãe não veja. Digo que já cheguei com a água e volto logo a correr para a praia. Passo outra vez junto dos meus amigos e começo a correr à volta deles, para os provocar, sei que não correm tanto como eu. Na volta trago os chinelos.


P.S: Imagem cedida por Qel, do blog Um chocolate à chuva, a quem dedico este post. Não só pela gentileza ao passar-ma, mas também pela humanidade que revela ao escolher esta foto para fundo do seu blog. O qual recomendo visitar.

3 comentários:

qel disse...

(...) obrigou-me a calçar os chinelos, eu não gosto nada - o meu pai nunca mos obrigou a usar. (...) Tinha os chinelos molhados e colavam-se nos pés, não gosto nada disso e tive de os tirar, se não fizer barulho pode ser que a minha mãe não veja».

é impressionante a maneira com que consegues criar através de uma imagem fazendo-a corresponder na perfeição ao texto. O modo como o discurso, que podia muito bem ser o registo dessa menina da fotogragia, está simples e ao mesmo tempo cuidado, o que é espantoso também.
E por fim, muito obrigada, é uma honra o meu blog estar aqui referido e, mais do que isso, recomendado. Obrigada mesmo, eu é que tenho de agradecer. Sempre que precisares de algo, dispõem ;)
Um beijinho! *

A Coração disse...

Especial. Um texto muito especial. Daqueles que dói de forma doce a quem o lê.

Marisa Fernandes disse...

A partir de uma imagem, esta é uma história que bem pode ser um retrato da realidade...! =)

http://escritoemlaranja.blogspot.com