Os pés sentiam calçadas, asfalto, escadas algumas vezes.
Um passeio por ruas onde poucos carros se cruzam, e, quando o fazem, enchem o
caminho por completo. Em redor, apenas o barulho de algumas janelas a abrir, de
passos a fazerem eco fazendo tomar noção de sítios ao lado, alguns
estabelecimentos abertos, outras pessoas que passavam e depressa se escapavam
noutro emaranhado de becos qualquer.
-Não andamos em voltas? Isto é tudo igual, ruazitas
pequenas a subir ou descer... Tenho a sensação de já aqui ter passado.
-Acho que não. - levantou a cara, deixando o olhar
prosseguir até onde podia - Pelo menos não me parece. Andamos mais um pouco e
depois vê-se, tenho a certeza que não devemos estar longe.
-Mas ao menos conheces a zona? Sabes mesmo onde isso
fica?
-Sei, sei. Como te disse, perguntei-lhe ontem, é só subir
ali. E já passei aqui algumas vezes.
Os seus passos tornavam-se rápidos em comparação com os
dela. Tentava andar mais devagar, a olhar para o que o rodeava, como à procura
de uma indicação qualquer. Virou-se para ela:
-Queres parar um pouco? Queres ir a um café?
-Não, não, não é preciso. Porquê?
-Está calor… - para um pouco -, podias querer beber
qualquer coisa.
-Agora não tenho sede.
A rua em que seguiam estreitava em poucos metros, ficando
practicamente entregue a casas e passando de mero asfalto a escadas de calçada.
No cimo, olhando de relance, viu-se passar um carro. Ele virou-se rapidamente
para ela.
-Estamos quase. Aposto que dali já se vê.
-A sério?
-Sim. Estamos perto, anda.
Continuaram mais um pouco, até ele reparar que a deixava
novamente para trás e que agora tinha na cara uma expressão de incómodo. Ele
parou a olhar para ela.
-Dói-me o pé. - disse-lhe.
-Dói-te o pé?
-Sim. Não sei, é mais ou menos aqui. - e abaixou-se
indicando onde a zona, aumentado a cara de dor.
-E agora? - voltou momentaneamente a cara em direcção ao
topo das escadas, deixando cair o braço.
-Não sei... parece-me ser um dedo qualquer...
-Doí-te muito? Queres parar?
-Sim... um pouco.
Sentou-se no passeio, apoiada na parede de uma casa e no
ombro dele. Ele fez o mesmo, tocando-lhe em seguida ao de leve no pé. Ela mexia
na mala, que estava ao lado das pernas cruzadas. Tirou a máquina, e tinha-a
agora segura, à frente dos ombros, pronta para disparar enquanto olhava em
volta, à procura duma imagem. Ele seguia-lhe os olhos.
Um miúdo passou a correr, vindo do nada, com outro a
surgir de seguida do mesmo local, parecendo que quase a cair. Os dois faziam
uma espécie de grito que se misturava com sorrisos e ficou como eco entre os
prédios até desaparecerem atrás de um. Um homem veio à porta dum café a bater
com os pés e bracejando enquanto lhes gritava, por momentos cochichou qualquer
coisa para dentro sem de lá receber sinal, acabou por olhar para cima e ver uma
mulher apoiada à janela, os dois abanaram a cabeça e trocaram meia dúzia de
palavras, olhou de novo para o sítio onde deixou de os ver e acabou por entrar.
Ela fotografou as suas pernas enquanto corriam, no instante em que o primeiro
já se preparava para virar. Os risos perdiam força à medida que se enfiavam
cada vez mais no resto da cidade.
-Apanhaste-os?
-Sim, mas a foto ficou mal.
-Deixa ver. - e chegou-se mais perto, olhando para a
câmara.
-Já apaguei. Não valia a pena deixar.
-Gosto daquela casa - apontou - é um bocado antiga mas
parece ter qualquer coisa, não sei dizer o quê.
-Hum... não gosto muito. A fachada não me parece nada
demais, nada nas varandas... achas que vive lá alguém? - os cabelos taparam-lhe
a face quando se virou para ele.
-Não sei, talvez. Pelo menos eu acho não me importaria
muito. Parecem ser umas paredes com mais que tijolo e cimento. - Chegou-se para
trás, levantando o braço direito e deixando a mão suspensa no ar, frente à boca
que parecia dizer alguma coisa. Os olhos ficaram mais pequenos, com o cabelo a
cair pela testa. Os joelhos estavam levantados, sobre as pernas cruzadas.
Enquanto isso, a câmara estava agora caída sobre as pernas
dela, com as mãos por cima; os olhos estavam baixos. O vento fez uma janela
abrir ligeiramente a voltar atrás num instante a seguir, levando consigo o ar
que tinha apanhado e movendo o resto do que foi uma cortina. Os olhos dele
voltaram a pestanejar, repetindo o gesto muitas vezes, até que abanou
ligeiramente a cabeça fechando-os um pouco. Reparou como ela estava, e
tocou-lhe a mão, massajando-a lentamente, olhando-a sem que ela se movesse.
Levantou por instantes a mão para lhe retirar a câmara, que olhava agora como
se quisesse recordar como funcionava; esteve assim alguns uns segundos. As mãos
mantinham-se juntas, até ele segurar na máquina e, inclinando-se um pouco para
trás, tirar-lhe uma fotografia. Quando baixou um pouco a máquina, destapando a cara,
ela reparou que sorria.
-Não gosto que me tires fotos assim. Fico com um ar de
parva.
-Então estas podem ficar para contrastar com todas as
outras que tiras. - disse, sorrindo. Ela virou-se para a sua frente, escondendo
com os cabelos o sorriso que se notou pelo barulho diferente da respiração.
Voltou-se de novo, a disfarçar um pouco o sorriso. Ele tinha a cara apoiada na
palma da mão. Olhavam um para o outro. Na casa janela abria e fechava.
-Vamos? - perguntou, um pouco depois, ainda na mesma
posição.
-Sim, - respondeu mantendo o sorriso, e ligeiramente
subindo o seu rosto - já estou um pouco melhor.
Ele levantou-se de pronto e, olhando-a, estendeu a mão,
ajudando-a a subir. Sorriram um ao outro quando retomaram a caminhada,
conversando e virando-se constantemente um para o outro. A máquina estava
segura no ombro, e ia fazendo um barulho de quando em quando ao deslizar pela
roupa.