Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


terça-feira, 9 de dezembro de 2008

A Praia - parte II

A todos pertence história enquanto existe alma, naquela praia éramos desprovidos de tal certeza. Desejos, pensamentos, sentimentos, inalcançável. Fantasmas com corpo, figuras amontoadas em sombras sobre o areal, pedras moldando imagens perante o relógio do Sol, rodeados por dois montes, nenhuma vegetação, ondulação ou algo relevante, tudo envolto num pequeno eco, uma pequena música que guiava ordenando entradas e saídas, um chamamento em forma de silêncio, fora isso e de igual grau, nada. Apenas algo físico se movia, liberto de consciência, comandado por uma vontade de fuga física levada ao extremo, viciante, incapaz de reconhecer feições, unicamente provida duma tentativa de equilíbrio interior em detrimento de qualquer religião ou conduta, uma crença também, uma crença num escape real sem sentido, sem reflexão, um proveito procurado, era a calma que nos guiava sem entendermos.
Inconscientes, encontrávamos sempre o caminho para a placa, como se uma energia encaminhasse depois de completos. Passado o Caminhos dos Desalmados regressávamos com ela, solta no vento à espera dum regresso capaz de a tomar, de a usar plenamente. Nunca fiz, tanto o pleno como um jogo de pés entre os dois estados, sem alma-alma, inconsciente-consciente, um objectivo em que se podia perder e ganhar alternadamente razão, possível num lugar lógico, não o era. Assim, quem a perdesse era imediatamente reencaminhado para a praia, calma como castigo, um ritual de purificação.
Quando saía algo era diferente, demorava até a alma se organizar. Observava-me, sei que me observava, rapidamente deslumbrava imagens, flashes com tudo o que fazia sem perceber. Momentos cambaleando pela praia até me encontrar sentado ou a abandonar, carregado duma estupidez em níveis profundos, uma completa ausência de raciocínio. Olhando para nada e tudo sem algo focar, imóvel na paz aparentemente perpétua, como se o Mundo, longe, fosse um esboço incapaz de existir, também o espírito escapava, apenas uma calma enganadora e puramente física, libertando corpo e mente no final, matéria moldando verdade, quem sabe, não mais que uma inconsciência.

1 comentário:

Rita Silva Avelar disse...

Ora que bela história.

(Respondendo ao teu comentário, poeta és tu. :) )