Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

A Praia - parte V

Há algo no Homem que o faz seguir sem saber, ir buscar ao fundo razões sem o serem, vontades sem se sentirem, uma incerteza capaz de fazer brilhar o que antes era pálido, rejuvenescer aquilo que morria. Não apenas ideais de felicidade, ambição ou qualquer outro sentimento comum poderão ser culpados. Mas é a alma, é nela que existe o que de nós nunca conseguimos descobrir. Carrega por todo o lado na sua caixa subconsciente, as formas experimentadas dos nossos desejos que ficaram por cumprir, os medos que apavoraram as nossas conquistas e derrotas, mas também a coragem. Tudo o que nos faz decidir um lado ou outro, fugir ou enfrentar, acreditar ou duvidar. Algo por excesso ou nada por defeito, talvez, uma coisa no meio, a infinitude de causas que nos levam, não por o que pensam ou querem de nós, mas o que sem sabermos, aspiramos a ser.
È algo que duvidamos quando deixamos de tentar viver, de tentar ser aquilo que estávamos ou não destinados. (Um miúdo que deixou de brincar sem razão quando o fazia por consideração nenhuma, não tendo dúvidas pois é impossível quando nem saberes se têm, apenas seu desejo, brincar). Mas quando dos nossos sonhos dizem que nada valem, que há um mundo lá fora que nos puxa e atormenta em salários, nomes e aparências, verdadeiros “sem-almas” transformados. Onde mais importante do que sentir é possuir e, mesmo não sentido, prazeres momentâneos são procurados, mesmo não havendo consciência, uma moral é defendida, preconceitos mantidos em prol de nada com um objectivo em tudo. Onde há muito tudo deixou de ser para apenas existirem representações, realidades inventadas, virtuais ou não, deixando A verdadeira sem observador. Ao passo que muda, mantêm-se na mesma medida e capacidade de aniquilamento os erros de sempre, incapazes de se sumirem por completo, tal como exterminarem tudo por completo, como se a derradeira vontade do ser humano seja uma dor invisível, não apenas por doenças ou frustrações, vinganças, deslizes, involuntários ou precipitados, mas o sentimento de nada saber em relação a “algo” que pode nem existir, impedida de por todos ser vista. Uma separação de níveis, um sofrimento maior naqueles que a conhecem e sentem, igual nos que “apenas” a sofrem, nada nos que já partiram ou nem chegaram a “acordar”. Uma fugacidade enorme de nada e tudo misturado em perguntas e semi-respostas nunca dadas, palavras ou vozes disparadas apenas para serem mantidas para sempre. Sofrer, sofrer sem o saber, mas afinal o que sofremos nós, do que realmente podemos dizer que conhecemos toda a sua vastidão. O que talvez nem real é, uma nuvem encobrindo razões de algo que nunca o foi, fazendo parecer tudo o que não o é.

1 comentário:

maria miguel disse...

"Carrega por todo o lado na sua caixa subconsciente, as formas experimentadas dos nossos desejos que ficaram por cumprir, os medos que apavoraram as nossas conquistas e derrotas, mas também a coragem."

adorei esta frase, passou-me muito.
beijinho