Não é necessário que saias de casa. Fica
à mesa e escuta. Não escutes, espera apenas.
Não esperes, fica em silêncio e só. O mundo
virá oferecer-se a ti para que o desmascares,
não pode fazer outra coisa, extasiado, ´
contorcer-se-á diante de ti.

Franz Kafka, "Aforismos"


quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

A Praia - parte IV

A Praia era dirigida. O “silêncio” controlado em sons imperceptíveis, criado por um dos seus fiéis, um Sem-Nome como todos, um Sem-História iniciado. Como um fantasma independente, não por consciência própria. Vagueando rumos de ninguém à procura das respostas de todos, insaciável no seu desígnio, apenas mais um entre nenhuns. Era assim o desejo de outros.
Tudo começara como uma experiência, encontrar o timbre que fizesse o Homem levitar. Um objectivo puramente artístico que abrangesse o seu propósito, desenvolver novos mundos através de expressões. Um enlevo de poeiras sensoriais, onde o corpo era esquecido e como alimento do espírito a sua fiel companheira, música.
Nas primeiras tentativas, havia um grande conjunto de instrumentos alinhados na mesma nota mas em amplitudes diferentes. Sendo a confusão dada como resultado inevitável. Muitos foram tentados para papel dominante, algo que pudesse reger os restantes numa melodia calma. Nada resultava. Um som auto-proclamado, quase de origem divina, procurado desesperadamente em tantos instrumentos, nunca poderia resultar, teria de ser um só.
Transportas várias experiências, a resposta foi dada pelo resultado inicial, aquele nevoeiro de sons onde se mutilava algo ímpar encobrindo por outros. Uma voz única formada na repetição, sem se ouvir de inicio, essencial, sublime, diferente depois. Uma alma que eleva as restantes pela sua singularidade e presença, desprendimento material. Era o que bastava, o Didgeridoo, instrumento de sopro, originário dos aborígenes e tocado há mais de 1500 anos. Tribal, espírito e corpo num só.
Um chamamento surreal de paz. O chamariz onde correriam todas as almas desocupadas. Mesmo além da transcendência inevitável de tal objecto, foi aumentado o seu poder. Uma simbiose de vontades em prol dum único objectivo, levitar. Tudo levado ao extremo de potencialidades diversas e próprias, mil influências originando mil sonhos cada um. Aperfeiçoando assim, o mais abstracto, impercebível e marcante som possível.

Didgeridoo:

4 comentários:

Rita Silva Avelar disse...

You did it. :) very good, as always. kiss

maria miguel disse...

Li hoje, pela primeira vez, a história do início ao fim.
é incrível a forma como consegues passar tudo aquilo que vês para a escrita, e pássa-lo de uma forma tão clara que nos permite a nós, que lemos, ver tudo o que tu vês.
adorei a forma como passaste de uma ideia inicialmente pesada para uma resolução tão simples.
adorei, mais uma vez.

uma pergunta, e depois de responderes eu explico-te x) és do Porto?

maria miguel disse...

:| isso ainda é mais impressionante. pensava que tinhas vivido o que está escrito.
ai mãe, parabéns x)

a tua forma de escrever faz-me lembrar a cidade onde nasci e para onde quero ir, o Porto. não sei explicar porquê, mas faz mesmo :)

maria miguel disse...

obrigado :)
sim, lá há uma quantidade de visões infinita. e ninguém critica, que é o que mais admiro.